08/05/2019

O outro lado de Z

O outro lado do real






Entre o relato cru de crítica social e a fantasia pura, O outro lado de Z é mais uma boa surpresa em português, num ano prometedor que ainda só conta quatro meses.
As primeiras páginas deste livro que marca o regresso à escrita - ou pelo menos à publicação… - de Nuno Duarte - A fórmula da felicidade, O Baile… - parecem indiciar uma narrativa de forte cariz social, ancorada na realidade recente. Os protagonistas, Teo e Nina, trabalham num call center. Esta última é vítima de violência doméstica (mal-disfarçada). Vivem sob o peso da incompreensão que os rodeia, por parte de vizinhos, chefias, mesmo amigos… Sentem-se perdidos no mundo que é deles mas onde sentem não pertencer.
A chegada de Z ao call center vai abalar o eu pequeno mundo e alterar o rumo dos acontecimentos - mais do que pensavam ser possível, muito mais do que as primeiras páginas pareciam prometer aos leitores. Rebelde, indisposta consigo e com o mundo, incapaz de calar o descontentamento, aos poucos Z vai surgir-lhes quase como o ideal de vida a que aspiram mas a que nunca se atreverão.
Mas o contrário, também vai ter lugar. Teo e Nina vão influenciar a nova amiga e mostrar-lhe que a vida pode ser mais do que revolta, permanente mau-humor e desilusão.
Até ao momento em queem que o tom hiper-realista dá lugar à entrada em força do fantástico - e terão que ler o livro para saber pormenores, porque não vou revelar mais - numa mudança de registo que pode ser interpretada como a afirmação de que só o refúgio em sonhos e fantasia pode libertar os jovens - todos nós, na verdade - dos jugos do quotidiano.
Pela extensão do relato e pelo tempo que terá levado a executar, o traço de Mosi, assumidamente de contornos não completamente definidos e a meio caminho entre os dois ‘universos’ representados, apresenta alguns desequilíbrios, com uma ou outra vinheta em que falham expressões ou poses em contraste com pranchas e vinhetas muito bem conseguidas.
Em termos cromáticos, se as tonalidades suaves e algo fria das cenas realistas surge perfeitamente adequada e funciona muito bem, não apreciei muito as cores utilizadas nas cenas fantásticas, que compreendo no contexto e no desejo de contraste com o restante do álbum, mas que me parece que ganhariam se fossem mais quentes e fortes.
No seu conjunto, O outro lado de Z, é uma narrativa que se lê com interesse crescente, que surpreende o leitor mais do que uma vez, numa alegoria (quase sempre) equilibrada entre as suas dimensões realista e fantástica e que deixa uma grande latitude à capacidade de interpretação de cada um e poderá mesmo obrigar leituras repetidas para completa apreensão do que (nos) é proposto.

Nota
Já o escrevi, mas acho importante repetir: ‘O Outro lado do Z, é uma edição tripartida entre a Comic Heart, a G. Floy e a Kingpin Books. Uma forma saudável de dividir custos e questões logísticas na sempre complicada aposta em autores portugueses.” E acrescento: e de potenciar e aproveitar o que de bom eles podem trazer.

O outro lado de Z
Nuno Duarte (argumento)
Mosi (desenho)
Kingpin Books, Comic Heart e G. Floy
Portugal, Março de 2019
202 x 276 mm, 80 p., cor, capa dura
13,99 €

(imagens e informação disponibilizadas pela organização; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. E o final? Aquilo existiu? Afinal nao? Tenho que ler outra vez mas queria um spoiler jeitoso...

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    1. Como escrito acima, o Nundo Duarte deixou uma grande margem à interpretação dos leitores... A resposta à pergunta será dada pela interpretação de cada um...
      ...e, sim, também tive de ler e reler o álbum antes de me abalançar a escrever este texto...
      Boas leituras

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