08/07/2019

Mar de Aral

...e um certo cheiro a peixe






Há, por vezes, coisas que nos fazem falta - que a mim fazem - mas cuja ausência só constatamos conscientemente quando as reencontrámos.
A escrita de José Carlos Fernandes era uma delas e este seu regresso, mesmo que efémero (?), explica à saciedade porquê.
São vários os aspectos que distinguem JCF enquanto argumentista. Desde logo a sua vasta cultura e a forma como consegue explaná-la, quase de forma despercebida, nos seus escritos.
Depois, a acuidade do seu olhar, a forma a um tempo perspicaz e mordaz como olha para a nossa sociedade, a nossa forma de ser e (sobre)viver e no-las devolve, como que através de um espelho deformador que exacerba tiques, manias, estereótipos e ideias feitas, em relatos em que torna o impossível credível, o absurdo razoável e o pontual regra, obrigando o leitor a um sorriso amarelo e a uma introspecção incómoda para avaliar quanto de si há em cada uma das personagens disfuncionais com que nos presenteia.
Mar de Aral não é excepção e os cinco relatos que o compõem - e que finalmente vêem a luz do dia - são outros tantos exemplos, mesmo que versem sobre a capacidade de adaptação dos peixes face à diminuição das toalhas líquidas do planeta, o pulular de animais de grande porte nos telhados das cidades, o fim das escolas para ursos face à extinção dos salmões, a credibilidade levado ao limite ou a revolta dos defuntos vestidos de roupas velhas...
A cada um destes relatos, unidos pelo tal absurdo e, nalguns deles, por um estranho tom de antecipação - mas quantas vezes a ficção antecipou a realidade? - Roberto Gomes, o cúmplice gráfico de JCF nesta obra, conferiu um visual diferente - com merecido destaque para a narrativa que dá título ao livro - ajustando o seu traço aos respectivos tons e cenários de acção o que, a par de uma planificação que privilegia a legibilidade, faz de Mar de Aral uma obra que importa conhecer.
Por tudo isto, por tudo aquilo que nos narra, depois de lido, Mar de Aral , se por um lado desperta o tal sentimento inconsciente de perda e de saudade, por outro deixa sem dúvida efeitos que perdurarão no tempo. Desconfio que muitos dos seus leitores nunca mais olharão para um daqueles presentes mal-cheirosos que cada vez mais enchem os nossos passeios sem um olhar intuitivo para os telhados próximos, nem passarão por um qualquer desconhecido desengonçado e mais encoberto pelas roupas sem sentir de imediato um certo cheiro a peixe…

Nota final
Para além da edição portuguesa - e que bem edita os autires portugueses a parceria Comic Heart/G. Floy! - Mar de Aral teve edição simultânea em polaco, francês, basco e espanhol. É obra.
Parece que não era só eu a ter saudades de José Carlos Fernandes…

Mar de Aral
José Carlos Fernandes (argumento)
Roberto Gomes (desenho)
Comic Heart/G. Floy
Portugal, Maio de 2019
190 x 290 mm, 72 p., cor, capa dura
14,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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