Há,
por vezes, coisas que nos fazem falta - que a mim fazem - mas cuja
ausência só constatamos conscientemente quando as reencontrámos.
A
escrita de José Carlos Fernandes era uma delas e este seu regresso,
mesmo que efémero (?), explica à saciedade porquê.
São
vários os aspectos que distinguem JCF enquanto argumentista. Desde
logo a sua vasta cultura e a forma como consegue explaná-la, quase
de forma despercebida, nos seus escritos.
Depois,
a acuidade do seu olhar, a forma a um tempo perspicaz e mordaz como
olha para a nossa sociedade, a nossa forma de ser e (sobre)viver e
no-las devolve, como que através de um espelho deformador que
exacerba tiques, manias, estereótipos e ideias feitas, em relatos em
que torna o impossível credível, o absurdo razoável e o pontual
regra, obrigando o leitor a um sorriso amarelo e a uma introspecção
incómoda para avaliar quanto de si há em cada uma das personagens
disfuncionais com que nos presenteia.
Mar
de Aral
não é excepção e os cinco
relatos que o compõem - e que finalmente vêem a luz do dia - são
outros tantos exemplos, mesmo que versem sobre a capacidade de
adaptação dos peixes face à diminuição das toalhas líquidas do
planeta, o pulular de animais de grande porte nos telhados das
cidades, o fim das escolas para ursos face à extinção dos salmões,
a
credibilidade levado ao limite ou a revolta dos defuntos vestidos de
roupas velhas...
A
cada um destes relatos, unidos pelo
tal absurdo e, nalguns deles, por
um estranho tom
de antecipação - mas quantas vezes a ficção antecipou a
realidade? - Roberto Gomes, o cúmplice gráfico de JCF nesta obra,
conferiu um visual diferente - com merecido destaque para a narrativa que dá título ao livro - ajustando o seu traço aos respectivos
tons e cenários de acção o que, a par de uma planificação que
privilegia a legibilidade, faz de Mar
de Aral uma
obra que importa conhecer.
Por
tudo isto, por tudo aquilo que nos narra, depois de lido, Mar
de Aral
, se por um lado desperta
o tal sentimento inconsciente de perda e de saudade, por outro deixa
sem dúvida efeitos que perdurarão no tempo. Desconfio que muitos
dos seus leitores nunca mais olharão para um daqueles presentes
mal-cheirosos que cada vez mais enchem os nossos passeios sem um
olhar intuitivo para os telhados próximos, nem passarão por um
qualquer desconhecido desengonçado e mais encoberto pelas roupas sem
sentir de imediato um certo cheiro a peixe…
Nota
final
Para
além da edição portuguesa - e que bem edita os autires portugueses a parceria Comic Heart/G. Floy! - Mar de Aral teve edição simultânea em
polaco, francês, basco e espanhol. É obra.
Parece que não era só eu a ter saudades de José Carlos Fernandes…
Parece que não era só eu a ter saudades de José Carlos Fernandes…
Mar
de Aral
José
Carlos Fernandes (argumento)
Roberto
Gomes (desenho)
Comic
Heart/G. Floy
Portugal,
Maio de 2019
190
x 290
mm, 72
p., cor, capa dura
14,00
€
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