(introdução
publicada na edição da colecção Novela Gráfica 2019)
Conhecer
o desfecho de uma história logo nas primeiras páginas, se não é
caso único, consegue sempre surpreender os leitores. Frango com
Ameixas (Poulet aux Prunes na edição original de 2004) é
mais um exemplo desse artifício narrativo, desta vez assinado pela
iraniana Marjane Satrapi, que se estreia assim na colecção Novela
Gráfica, que a Levoir e o Público têm alimentado anualmente desde
2015.
Marjane
Satrapi nasceu em Rasht, no Irão, em 1969. Cresceu em Teerão, no
seio de uma família progressista, e foi lá que assistiu à
Revolução Iraniana que provocou a queda do Xá Reza Pahlavi e a
ascensão ao poder dos fundamentalistas islâmicos, cuja face era na
altura o imã Ruhollah Khomeini, com a consequente repressão
crescente das liberdades individuais.Depois de alguns anos a estudar
em Viena, na adolescência, e o regresso a Teerão, onde tirou um
mestrado em Comunicação Visual e esteve casada durante três anos,
acabaria por se estabelecer em França, onde ainda reside. Foi neste
país que lançou Persépolis (2000),
a sua obra de estreia, em que narra os seus primeiros anos, que a
revelou como a primeira autora iraniana de banda desenhada, e teve um
grande impacto mediático.
Após
narrar o regresso ao seu país natal, nos volumes finais de
Persépolis, em 2004
Satrapi surpreendeu os leitores com este livro que o leitor tem agora
nas mãos. O sucesso da sua obra de estreia viria a proporcionar-lhe
a possibilidade de a adaptar em cinema de animação, em 2007, em
parceria com Vincent Paronnaud, o que lhes valeu uma nomeação para
o Óscar.
Em
relação a Persépolis, Frango com Ameixas aparenta
uma componente autobiográfica bem menos vincada, pois a autora só
aparece de passagem no livro, apesar de ele estar centrado na vida de
um tio. Esta conclusão, no entanto, pode ser enganosa pois se na
realidade Satrapi nunca o conheceu, pois nasceu 12 anos após a sua
morte, isso não invalida que a reescrita ficcional da sua história
tenha tido uma componente catártica, numa época em que a própria
autora (também) atravessava uma crise existencial.
A
obra aborda um curto período (uma semana apenas) do final da vida de
Nasser Ali Khan, um famoso tocador de tar, um instrumento
musical de cordas, tradicional do Irão, Azerbaijão, Geórgia,
Arménia e outras zonas próximas do Cáucaso. A perda do seu
instrumento, por razões que o leitor descobrirá e que terão
reflexos no estado de espírito do protagonista, levá-lo-à,
primeiro, a desenvolver várias tentativas de o substituir e, num
segundo momento, profundamente deprimido, desiludido com tudo e todos
- ou apenas consigo mesmo? - a decidir morrer. Morrer, mas não a pôr
fim à sua vida, o que fará toda a diferença e introduz mais uma
componente estimulante num relato íntimo em que vamos descobrir
momentos-chave da vida de Nasser Ali.
Distinguido
em 2005, com o Alph’Art para Melhor Álbum, no Festival de
Banda Desenhada de Angoulême, França, Frango com Ameixas,
será mais tarde levado ao cinema pela própria Satrapi, numa
adaptação cinemática com actores reais. Este romance gráfico irá
revelar uma autora mais madura no que diz respeito à narração
sequencial e também a nível gráfico.
Neste
último aspecto, se é verdade que Frango com Ameixas,
que decorre em Teerão no final da década de 1950, mantém o
traço naif personalizado que a distinguiu inicialmente,
assente em fortes contrastes de branco e negro sem tons intermédios,
é também manifesto que ostenta uma maior fluidez narrativa.
Continua simultaneamente eficaz e capaz de transmitir as emoções e
os sentimentos dos protagonistas, mas as personagens estão melhor
trabalhadas em termos de individualidade e volume, o que as linhas
quase exclusivamente bidimensionais dos primeiros tempos de Satrapi
não permitiam. A maior variação do tamanho e da disposição nas
páginas de tiras e vinhetas, embora sejam realizadas numa óptica
tradicional, também contribuem para ritmar a leitura e salientar os
pontos fortes do relato.
Na
verdade, é em termos narrativos que melhor se revela o
amadurecimento e o crescimento autoral de Marjane Satrapi, que gere
com mestria os tempos da narração através de diálogos curtos mas
assertivos, pontuando-a com poesia, humor e nostalgia. A forma como o
ponto de vista vai mudando sucessivamente ao longo do livro -
espelhando o desfecho da fábula do elefante narrada nele - vai
prendendo o leitor, levando-o a querer lê-lo até ao fim, apesar
deste já estar anunciado, o que não impede uma conclusão mesmo
assim surpreendente.
Apesar
de Satrapi aproveitar para dar uma visão geral do quotidiano no
Irão, nesta obra, em relação a Persépolis, há uma clara
mudança de perspectiva, com o foco a mudar do país para o
individual, repousando nas relações pessoais. Isso justifica o tom
intimista adoptado para narrar como Nasser Ali, um homem egoísta e
que sempre viveu apenas para si, embora em função dos outros, vai
passar em revista os momentos mais marcantes da sua vida - a relação
com a mulher, com os filhos, com a música em geral e o seu tar em
particular, com a mãe, com o irmão… - e mostrar como as escolhas
feitas pelo protagonista - ou muitas vezes deixadas por fazer… -
influenciaram decisivamente uma vida, que oscilou sempre entre o
trágico e o burlesco, em que as motivações nunca foram as ideais e
em que, apesar dos sucessos alcançados, viveu sempre sob o peso da
sombra de outros, passando ao lado da auto-realização e da
felicidade.
E
se na sua espiral descendente, o protagonista chega ao ponto de não
ter gosto nem sentir sabor ou prazer na degustação do seu prato
preferido entre aqueles que a sua mãe cozinhava, para o leitor este
Frango com Ameixas apresenta-se como uma bela iguaria.
Frango
com ameixas
Marjane
Satrapi
Levoir/Público
Portugal,
11 de Julho de 2019
170
x 240 mm, 88 p., pb, capa dura
10,90
€
(imagens
disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em
toda a sua extensão)
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