15/07/2019

Frango com Ameixas

Morte e vida de um tocador de tar
(introdução publicada na edição da colecção Novela Gráfica 2019)




Conhecer o desfecho de uma história logo nas primeiras páginas, se não é caso único, consegue sempre surpreender os leitores. Frango com Ameixas (Poulet aux Prunes na edição original de 2004) é mais um exemplo desse artifício narrativo, desta vez assinado pela iraniana Marjane Satrapi, que se estreia assim na colecção Novela Gráfica, que a Levoir e o Público têm alimentado anualmente desde 2015.
Marjane Satrapi nasceu em Rasht, no Irão, em 1969. Cresceu em Teerão, no seio de uma família progressista, e foi lá que assistiu à Revolução Iraniana que provocou a queda do Xá Reza Pahlavi e a ascensão ao poder dos fundamentalistas islâmicos, cuja face era na altura o imã Ruhollah Khomeini, com a consequente repressão crescente das liberdades individuais.Depois de alguns anos a estudar em Viena, na adolescência, e o regresso a Teerão, onde tirou um mestrado em Comunicação Visual e esteve casada durante três anos, acabaria por se estabelecer em França, onde ainda reside. Foi neste país que lançou Persépolis (2000), a sua obra de estreia, em que narra os seus primeiros anos, que a revelou como a primeira autora iraniana de banda desenhada, e teve um grande impacto mediático.
Após narrar o regresso ao seu país natal, nos volumes finais de Persépolis, em 2004 Satrapi surpreendeu os leitores com este livro que o leitor tem agora nas mãos. O sucesso da sua obra de estreia viria a proporcionar-lhe a possibilidade de a adaptar em cinema de animação, em 2007, em parceria com Vincent Paronnaud, o que lhes valeu uma nomeação para o Óscar.

Em relação a Persépolis, Frango com Ameixas aparenta uma componente autobiográfica bem menos vincada, pois a autora só aparece de passagem no livro, apesar de ele estar centrado na vida de um tio. Esta conclusão, no entanto, pode ser enganosa pois se na realidade Satrapi nunca o conheceu, pois nasceu 12 anos após a sua morte, isso não invalida que a reescrita ficcional da sua história tenha tido uma componente catártica, numa época em que a própria autora (também) atravessava uma crise existencial.
A obra aborda um curto período (uma semana apenas) do final da vida de Nasser Ali Khan, um famoso tocador de tar, um instrumento musical de cordas, tradicional do Irão, Azerbaijão, Geórgia, Arménia e outras zonas próximas do Cáucaso. A perda do seu instrumento, por razões que o leitor descobrirá e que terão reflexos no estado de espírito do protagonista, levá-lo-à, primeiro, a desenvolver várias tentativas de o substituir e, num segundo momento, profundamente deprimido, desiludido com tudo e todos - ou apenas consigo mesmo? - a decidir morrer. Morrer, mas não a pôr fim à sua vida, o que fará toda a diferença e introduz mais uma componente estimulante num relato íntimo em que vamos descobrir momentos-chave da vida de Nasser Ali.
Distinguido em 2005, com o Alph’Art para Melhor Álbum, no Festival de Banda Desenhada de Angoulême, França, Frango com Ameixas, será mais tarde levado ao cinema pela própria Satrapi, numa adaptação cinemática com actores reais. Este romance gráfico irá revelar uma autora mais madura no que diz respeito à narração sequencial e também a nível gráfico.

Neste último aspecto, se é verdade que Frango com Ameixas, que decorre em Teerão no final da década de 1950, mantém o traço naif personalizado que a distinguiu inicialmente, assente em fortes contrastes de branco e negro sem tons intermédios, é também manifesto que ostenta uma maior fluidez narrativa. Continua simultaneamente eficaz e capaz de transmitir as emoções e os sentimentos dos protagonistas, mas as personagens estão melhor trabalhadas em termos de individualidade e volume, o que as linhas quase exclusivamente bidimensionais dos primeiros tempos de Satrapi não permitiam. A maior variação do tamanho e da disposição nas páginas de tiras e vinhetas, embora sejam realizadas numa óptica tradicional, também contribuem para ritmar a leitura e salientar os pontos fortes do relato.

Na verdade, é em termos narrativos que melhor se revela o amadurecimento e o crescimento autoral de Marjane Satrapi, que gere com mestria os tempos da narração através de diálogos curtos mas assertivos, pontuando-a com poesia, humor e nostalgia. A forma como o ponto de vista vai mudando sucessivamente ao longo do livro - espelhando o desfecho da fábula do elefante narrada nele - vai prendendo o leitor, levando-o a querer lê-lo até ao fim, apesar deste já estar anunciado, o que não impede uma conclusão mesmo assim surpreendente.

Apesar de Satrapi aproveitar para dar uma visão geral do quotidiano no Irão, nesta obra, em relação a Persépolis, há uma clara mudança de perspectiva, com o foco a mudar do país para o individual, repousando nas relações pessoais. Isso justifica o tom intimista adoptado para narrar como Nasser Ali, um homem egoísta e que sempre viveu apenas para si, embora em função dos outros, vai passar em revista os momentos mais marcantes da sua vida - a relação com a mulher, com os filhos, com a música em geral e o seu tar em particular, com a mãe, com o irmão… - e mostrar como as escolhas feitas pelo protagonista - ou muitas vezes deixadas por fazer… - influenciaram decisivamente uma vida, que oscilou sempre entre o trágico e o burlesco, em que as motivações nunca foram as ideais e em que, apesar dos sucessos alcançados, viveu sempre sob o peso da sombra de outros, passando ao lado da auto-realização e da felicidade.
E se na sua espiral descendente, o protagonista chega ao ponto de não ter gosto nem sentir sabor ou prazer na degustação do seu prato preferido entre aqueles que a sua mãe cozinhava, para o leitor este Frango com Ameixas apresenta-se como uma bela iguaria.

Frango com ameixas
Marjane Satrapi
Levoir/Público
Portugal, 11 de Julho de 2019
170 x 240 mm, 88 p., pb, capa dura
10,90 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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