29/07/2020

La Isla del dr. Moreau

Outra vez (os clássicos)







Clássico da literatura da autoria de H. G. Wells, A Ilha do dr. Moreau tem aqui (mais) uma adaptação. Conseguida e que serve para algumas divagações sobre o tema.

Resumo
Suponho que não será necessário, mas faço na mesma um (breve) resumo [com spoiler...!]. O único sobrevivente de um naufrágio chega a uma ilha desconhecia, onde é (bem) recebido pelos dois europeus que lá vivem. Aos poucos, vai aperceber-se que são muitos os segredos latentes e que, na sombra vivem monstros resultantes de experiências tendentes a transformar - a aproximar…? - animais em seres humanos.

Adaptar ou basear
Esta é uma das questões fundamentais quando se fala de transpor uma obra de um meio (narrativo) para outro. Aparentemente, basear-se no original, dá mais liberdade; adaptar garante maior fidelidade. Parece uma verdade indiscutível, mas está longe de o ser. O segredo, conhecido mas tantas vezes por alcançar, é manter o espírito da obra original, sem trair as suas linhas mestras, os seus propósitos, e dar-lhe vida própria e autónoma no novo suporte narrativo.

Desenvolvimento
No caso presente, La Isla del dr. Moreau baseia-se (apenas…) no romance original de Wells, atrevendo-se os autores a introduzirem (entre outras) duas mudanças marcantes e incontornáveis.
A primeira, é a troca de sexo do protagonista. O sobrevivente do naufrágio é ‘uma’ sobrevivente - Ellie em vez de Edwards. Esta opção aporta ao relato uma carga erótica significativa, transforma a sua interacção com um dos residentes e proporciona um olhar feminino - mais humano e assertivo - sobre os estranhos acontecimentos que têm lugar naquela ilha.
A segunda mudança introduzida corresponde ao final (re)criado - por isso, sem mais comentários, deixo aos leitores descobri-la. E avaliá-la.
Aparte tudo isto, esta era - e continua a ser - uma obra sobre os limites da ciência e da experimentação humana. Actual quando foi escrita há quase um século, ganha novo impacto nos tempos actuais.
Na fronteira entre a antecipação-científica, o terror e a pura especulação, passa também por questionar até que ponto os seres vivos - homens e animais, no caso - podem deixar a sua verdadeira natureza - a sua humanidade, a sua bestialidade, os seus instintos… com todos estes termos aplicados a todos eles.
Uma vez lida esta - conseguida - versão, fiquei com a sensação que o livro teria ganho se, em vez das 48 páginas, tivesse 64 ou mesmo 96. Isso permitira - numa primeira leitura - desenvolver algumas questões só pouco menos do que referidas, explorar a relação de Ellie e Montgomery e também a submissão deste ao dr. Moreau.
E também aprofundar os efeitos das sucessivas experiências nos animais. E de forma mais profunda a carga erótica latente que perpassa por boa parte da obra. E questionar esquisita religiosidade reinante...
No entanto, percebo que isso iria gorar um dos trunfos da criação de Ted Adams e Gabriel Rodríguez: o muito que foi deixado para o leitor inferir, o vazio propositado entre cada duas vinhetas que o leitor tem de preencher em função das suas percepções e princípios.
Uma e outra questão - o curto número de páginas e a liberdade interpretativa - mais as mudanças introduzidas, não questionam nem colocam em causa a fidelidade ao original e, mais do que isso, a legibilidade autónoma da banda desenhada, que pode ser apreciada sem conhecer nada do livro de Wells - nem de nenhuma das suas (muitas) adaptações.
Outro dos grande trunfos deste La Isla del dr. Moreau é belo traço de Rodríguez. Realista, expressivo, apoiado em cores planas, revela-se superlativo para reproduzir os ‘monstros’ que povoam a ilha - e a obra - mais a mais porque houve a opção por sucessivas páginas duplas, com vinhetas alargadas, repletas tanto de grandes planos quanto de visões de conjunto e, por isso, extremamente dinâmicas.
Curiosamente, perante a mestria demonstrada, custa a perceber como são tão desinteressantes - em relação ao que pode ser visto e (deve ser) apreciado no interior - as capas de Rodríguez, quer a desta compilação, quer as dos comics originais.

Excessos
Os paradigmas mudaram no últimos anos e hoje são raras as edições - e (já) não só de compilações de comics - que não trazem extras: esboços, estudos de personagens, desenhos preparatórios, esquissos das capas, capas alternativas…. Mas reproduzir numa edição com (apenas) 48 páginas de BD todas as páginas a lápis (azul) de Rodríguez parece-me claramente excessivo. Isto sem colocar minimamente em causa a sua qualidade. Algumas delas, seriam um belo complemento e ajudariam a compreender - e a admirar a outro nível - o rigor e a arte do desenhador; todas elas, acho desnecessário, servindo apenas para encarecer a edição - se bem que ajudem a dar consistência a mais um belo livro (objecto) da Panini…
Referência final para a muito interessante conversa entre Adams e Rodríguez nas últimas páginas, sobre a génese, o desenvolvimento e as opções assumidas por ambos para criar esta versão do clássico de Wells.

La Isla del dr. Moreau
Ted Adams (argumento)
Gabriel Rodríguez (desenho)
Panini Comics / selo Evolution Comics
Espanha, Julho de 2020
183 x 277 mm, 120 p., pb/cor, capa dura
17,00 €

(capa disponibilizada pela Panini; pranchas disponibilizadas pelo desenhador; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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