Clássico da literatura da autoria de H. G. Wells, A Ilha do dr. Moreau tem aqui (mais) uma adaptação. Conseguida e que serve para algumas divagações sobre o tema.
Suponho que não será necessário, mas faço
na mesma um (breve) resumo [com
spoiler...!]. O único sobrevivente de um naufrágio chega a
uma ilha desconhecia, onde é (bem) recebido pelos dois europeus que
lá vivem. Aos poucos, vai aperceber-se que são muitos os segredos
latentes e que, na sombra vivem monstros resultantes de experiências
tendentes a transformar - a aproximar…? - animais em seres humanos.
Adaptar ou basear
Esta é uma das questões fundamentais quando se fala de transpor uma
obra de um meio (narrativo) para outro. Aparentemente, basear-se no
original, dá mais liberdade; adaptar garante maior fidelidade.
Parece uma verdade indiscutível, mas está longe de o ser. O
segredo, conhecido mas tantas vezes por alcançar, é manter o
espírito da obra original, sem trair as suas linhas mestras, os seus
propósitos, e
dar-lhe vida própria e autónoma no novo
suporte narrativo.
Desenvolvimento
No caso presente, La Isla del dr. Moreau
baseia-se (apenas…) no romance original de Wells, atrevendo-se os
autores a introduzirem (entre outras) duas mudanças marcantes
e incontornáveis.
A primeira, é a troca de sexo do protagonista. O sobrevivente do
naufrágio é ‘uma’ sobrevivente - Ellie em vez de Edwards. Esta
opção aporta ao relato uma carga erótica significativa, transforma
a sua interacção com um dos residentes e proporciona um olhar
feminino - mais humano e assertivo - sobre os estranhos
acontecimentos que têm lugar naquela ilha.
A segunda mudança
introduzida corresponde ao final (re)criado - por isso, sem mais
comentários, deixo aos leitores descobri-la. E avaliá-la.
Aparte tudo isto, esta era - e continua a ser - uma obra sobre os
limites da ciência e da experimentação humana. Actual quando foi
escrita há quase um século, ganha novo impacto nos tempos actuais.
Na fronteira entre a antecipação-científica, o terror e a pura
especulação, passa também por questionar até que ponto os seres
vivos - homens e animais,
no caso - podem deixar a sua verdadeira natureza - a sua humanidade,
a sua bestialidade, os seus instintos… com todos estes termos
aplicados a todos eles.
Uma vez lida esta - conseguida - versão, fiquei com a sensação que
o livro teria ganho se, em vez das 48 páginas, tivesse 64 ou mesmo
96. Isso permitira - numa primeira leitura - desenvolver algumas
questões só pouco menos do que referidas, explorar a relação de
Ellie e Montgomery e também a submissão deste ao dr. Moreau.
E também aprofundar os efeitos das sucessivas experiências nos
animais. E de forma mais profunda a carga erótica latente que
perpassa por boa parte da obra. E questionar esquisita religiosidade
reinante...
No entanto, percebo que isso iria gorar um dos trunfos da criação
de Ted Adams e Gabriel Rodríguez: o muito que foi deixado para o
leitor inferir, o vazio propositado entre cada duas vinhetas que o
leitor tem de preencher em função das suas percepções e
princípios.
Uma e outra questão - o curto número de páginas e a liberdade
interpretativa - mais as mudanças introduzidas, não questionam nem
colocam em causa a fidelidade ao original e, mais do que isso, a
legibilidade autónoma da banda desenhada, que pode ser apreciada
sem conhecer nada do livro de Wells - nem de nenhuma das suas
(muitas) adaptações.
Outro dos grande trunfos deste La Isla del dr.
Moreau é belo traço de Rodríguez. Realista, expressivo,
apoiado em cores planas, revela-se superlativo para reproduzir os
‘monstros’ que povoam a ilha - e a obra - mais a mais porque
houve a opção por sucessivas páginas duplas, com vinhetas
alargadas, repletas tanto de grandes planos quanto de visões de
conjunto e, por isso, extremamente dinâmicas.
Curiosamente, perante a mestria demonstrada, custa a perceber como
são tão desinteressantes - em relação ao que pode ser visto e
(deve ser) apreciado no interior - as capas de Rodríguez, quer a
desta compilação, quer as dos comics originais.
Excessos
Os paradigmas mudaram no últimos anos e hoje são raras as edições
- e (já) não só de compilações de comics - que não trazem
extras: esboços, estudos de personagens, desenhos preparatórios,
esquissos das capas, capas alternativas…. Mas reproduzir numa
edição com (apenas) 48 páginas de BD todas as páginas a lápis
(azul) de Rodríguez parece-me claramente excessivo. Isto sem colocar
minimamente em causa a sua qualidade. Algumas delas, seriam um belo
complemento e ajudariam a compreender - e a admirar a outro nível -
o rigor e a arte do desenhador; todas elas, acho desnecessário,
servindo apenas para encarecer a edição - se bem que ajudem a dar
consistência a mais um belo livro (objecto) da Panini…
Referência final para a muito interessante conversa entre Adams e
Rodríguez nas últimas páginas, sobre a génese, o desenvolvimento
e as opções assumidas por ambos para criar esta versão do clássico
de Wells.
La Isla del dr. Moreau
Ted Adams (argumento)
Gabriel Rodríguez (desenho)
Panini Comics / selo Evolution Comics
Espanha, Julho de 2020
183
x 277
mm, 120 p., pb/cor,
capa dura
17,00 €
(capa
disponibilizada pela Panini; pranchas
disponibilizadas pelo desenhador; clicar
nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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