24/08/2020

O Expresso do Amanhã I

Conceito




Com as devidas cautelas, vou mesmo escrever que este álbum - o mítico Transperceneige originalmente publicado na revista (A Suivre) mais do que uma banda desenhada, representa um conceito.
E a prova, se necessário fosse, são as abordagens tão díspares que permitiu, neste livro que abre a colecção Novela Gráfica 2020; no seu segundo volume, já no próximo sábado; no filme de Bong Joo Ho, de 2013; e na série televisiva da Netflix, cuja primeira temporada terminou há poucas semanas.
O tal conceito que referi acima - praticamente o único ponto comum às quatro abordagens - explica-se rapidamente: as alterações climáticas transformaram toda a superfície terrestre num imenso deserto gelado e o que resta da humanidade está confinada a um imenso comboio - com as tais '1001 carruagens'... - que roda sem parar, numa linha circular.
Se bem que seja imenso, o comboio, para lá do aspecto claustrofóbico que representa - pelos limites espaciais que implica e que devem ter sido um bico de obra, quer para os autores de BD, quer para os realizadores de cinema e TV - está dividido por zonas: os dirigentes e os mais abastados na frente do comboio, juntamente com os vagões com hortas, aquários, gado e tudo o necessário à sobrevivência dos passageiros; nas zonas seguintes, vai-se descendo na escala social, até aos últimos compartimentos onde vivem em condições degradantes aqueles que na hora da partida, sem bilhete para entrarem, tomaram de assalto o comboio.
A partir daqui, as abordagens variam.

O original
O volume que a Levoir agora apresenta, é o original onde o conceito foi apresentado e explorado pela primeira vez. Datado de 1982, quando começou a ser pré-publicado na revista (À Suivre) - naquele que alguns consideram o período áureo da publicação - espelha de forma evidente as questões sociais que o Maio de 1968 levantara na sociedade francesa e que continuavam latentes - ou bem mais do que isso.
A abordagem de Jacques Lob centra-se nas questões sociais no interior da composição, nas injustiças praticadas em nome da ordem e da estabilidade, na repressão policial e militar que mantém os extremos a bordo do comboio, da sua cumplicidade com o poder religioso, fazendo deste relato uma alegoria evidente, não displicente e em tom acusatório, do que (um olhar extremado de esquerda) via na sociedade ao seu redor.
Com uma certa crueza gráfica - o que está longe de ser sinónimo de menor qualidade e até surge como um reflexo da desolação branca que rodeia o veículo e cobre todo o planeta - este livro contém alguns dos aspectos mais violentos das diversas abordagens - alguns deles plasmados nas versões seguintes.
De forma algo desencantada, no entanto, Lob dá-nos como protagonista um fugitivo da cauda do comboio, mais interessado em si próprio do que em melhorar as condições daqueles com quem habitava ou em tornar mais justa e equitativa a vida a bordo do expresso. E - em tempo de pandemia - torna-o (ainda?) mais desprezível aos (nossos) olhos (e aos) da elite e dos que dela dependem, como origem de um foco de contaminação que o torna (ainda mais) um alvo...
A companheira que encontrará no seu percurso, pelo contrário, revela-se uma verdadeira activista e a conciliação difícil - impossível? - das suas posturas e motivações é um dos pontos de interesse da obra, apenas suplantado pelo pioneirismo do conceito.
E, atrevo-me a escrevê-lo em tom de ponto final nesta análise de uma obra que merece ser lida, pela forma como o argumentista 'resolve' tudo, num final com muita força, sobre o qual não escreverei (mais) nada.

O Expresso do Amanhã I
Jacques Lob (argumento)
Jean-Marc Rochette (desenho)
Levoir/Público
Portugal, 22 de Agosto de 2020
190 x 260 mm, 128 p., pb, capa dura
10,90 €

(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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