15/10/2020

Soldados de Salamina

Autor e personagem





Tendo-me abeirado deste livro com justificadas expectativas, pelos ecos que já me tinham chegado e porque esperava pela edição desde Março - caso não tivesse havido pandemia - uma vez feita a leitura - que cumpriu o que eu aguardava - não consigo evitar associá-lo a duas outras obras aos quadradinhos.


Resumo

Adaptação do romance homónimo de Javier Cercas, Soldados de Salamina centra-se no destino de um prisioneiro que conseguiu escapar a um fuzilamento de apoiantes franquistas. Era Rafael Sánchez Mazas, poeta, fundador e ideólogo da Falange e futuro ministro de Franco.

Sessenta anos mais tarde, um romancista em crise de inspiração, investiga o episódio para esclarecer o que realmente aconteceu. E como.


Prólogo

Citei acima dois livros que me vieram à mente durante esta leitura. O primeiro, foi Os trilhos do Acaso, de Paco Roca, pelos diversos pontos de contacto que apresentam: a acção de ambos situa-se maioritariamente no conturbado período em que Espanha enfrentou a Guerra Civil e a II Guerra Mundial; em ambos os casos, o autor procura os protagonistas para conhecer a verdade, tornando-se co-protagonista da obra por incluir no seu relato o processo de investigação e as entrevistas. As similitudes ficam por aqui, até porque ideologicamente, os protagonistas de uma e outra estão em campos opostos.

A segunda obra que a actual leitura me evocou foi Os Passageiros do Vento: O sangue das Cerejas - livro 1, de François Bourgeon, por razões completamente diversas. Nele, como em Soldados de Salamina, senti alguma falta de empatia, pelo desconhecimento que tenho dos factos históricos relatados e das personagens que neles intervêm.


Desenvolvimento

Este livro está dividido em três partes. Na primeira conhecemos o autor/narrador e protagonista, um romancista em crise de inspiração, depois de dois romances de algum sucesso, escritos muito cedo. Reconvertido ao jornalismo, decide investigar o que aconteceu a Sánchez Mazas em Collell, as circunstâncias do fuzilamento, da fuga, de quem a facilitou. Uma série de perguntas, sem resposta à partida.

A segunda parte da obra, é fundamentalmente a biografia (conhecida) de Mazas, com desvios ocasionais para apontamentos sobre alguns daqueles com quem se foi cruzando. É fundamental para quem - como eu - não o conhece, porque traça um retrato incisivo do homem e marca a importância do político. Mas as respostas continuam maioritariamente por dar.

Finalmente, na terceira parte do livro - na qual Garcia se desvia do romance original, dando um cunho pessoal à obra, sem trair aquele - um encontro casual proporciona uma conversa com um dos figurantes de Collell - assim transformado em involuntário protagonista.

Num relato de ritmo sempre contido e emoções moderadas, em que existe uma tentativa de tornar o tom impessoal para desvalorizar a importância do autor/personagem, nesta parte final há uma cedência inevitável aos sentimentos. Não apenas como resultado do jornalista chegar ao fim da sua investigação mas principalmente porque o homem que ele é se reencontra consigo mesmo ao encontrar a verdade que procurava. Este aspecto é acentuado pela relação conflituosa que tem com a noiva, que surge demasiado caricatural no contexto global da obra, embora se compreenda a opção para atenuar a tensão latente.

Assim, ao fazê-lo, de certo modo torna (mais) real, palpável e credível aos nossos olhos, tudo o que estava para trás, humanizando, se assim posso definir, Mazas e os restantes co-protagonistas (mesmo que menores). O que, para um leitor como eu, que desconhecia a História espanhola e muito do contexto em que a narrativa decorre, é especialmente importante.


A reter

- O traço agradável de José Pablo Garcia.

- A utilização da cor para definir os diferentes momentos do relato.

- Sem conhecer a obra original, é notório que a adaptação em BD funciona de per si, sem revelar lacunas nem saltos narrativos.

- Apesar de ser incontornável, o uso abundante de textos de apoio em diversas situações nunca ultrapassa os limites que tornariam a obra maçadora ou quase ilegível.

- A revisitação - e interpretação de momentos históricos marcantes mas não consensuais, que o tom adoptado permite.


Menos conseguido

- Conhecer a História espanhola relativamente recente é fundamental para fruir completamente a obra; sem esse conhecimento, algumas passagens são quase um desfilar de desconhecidos. O autor não tem culpa, a lacuna é minha - como será de muitos leitores portugueses.

- o tom excessivamente caricatural da noiva do romancista.

- Javier Cercas é o autor do romance original. O autor desta adaptação em BD é José Pablo Garcia, mas a Porto Editora ignora-o completamente no seu site, onde apenas Cercas surge como 'o' autor deste livro.


Soldados de Salamina

Adaptação do romance homónimo de Javier Cerca

José Pablo Garcia

Porto Editora

Portugal, Outubro de 2020

176 x 248 mm, 152 p., cor, capa dura

18,80


(imagens disponibilizadas pela Porto Editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

4 comentários:

  1. Viva Pedro, esta obra já tinha despertado o meu interesse desde à algum tempo e, embora ainda não a tenha lido, julgo que levanta algumas questões pertinentes:

    1 - parece-me curioso este súbito despertar de algumas editoras convencionais em obras de BD - O traço comum aparenta ser adaptações de obras literárias - qual o critério de escolha? Existe verdadeiramente um editor conhecedor da 9ª arte nestas casas?

    2 - Este tipo de obras são relativamente abundantes no mercado espanhol mas o mercado português, que eu me recorde, nunca editou obras de fôlego de raiz ou adaptações de obras que cubram o nosso passado recente - desinteresse, faltam de talentos locais, desconhecimento?...

    3 - Tal como o Pedro diz estas são obras que dirão muito mais a quem, como os nosso vizinhos, esteja familiarizado que a história recente. Não nego seu interesse (para mim, muito...), mas a sua relevância para o mercado português será qual?.. A editora, pela sua óbvia colagem ao autor original, esperará algumas vendas por associação, mesmo por um público desconhecedor e não consumidor habitual de bd? Será assim?...

    4 - A omissão do autor da adaptação no site da editora é revelador das prioridades da Porto Editora....

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    1. Tentando responder às questões colocadas:
      1. Suponho que não há nenhum editor que perceba de BD. Neste caso concreto, a edição em BD deve ter vindo por arrastamento da edição do romance.
      2. O mercado espanhol é bem maior que o nosso... Por cá, tem havido muito pouco e geralmente pouco interessante.
      3. A obra em si vale a pena, justifica a edição. A questão das vendas, é outra e obedecerá maioritariamente à lógica do nosso pequeno mercado. Mas poderá chegar a outros públicos, que têm descoberto a BD através das 'novelas' gráficas.
      4. Pois...
      Boas leituras!

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    2. Pedro, ainda relacionado com este tomo e no que diz respeito ao ponto 3 do meu comentário anterior, existe algum prefácio ou texto que contextualize e enquadre o período histórico tratado ou as personagens, verídicas ou fictícias, que nele constam? Seria uma ajuda importante para o leitor interessado. Já gora, pode confirmar-me se a edição portuguesa respeita o formato original?. Desde já o meu obrigado.

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    3. Caro Antonio,
      O livro não tem qualquer texto de enquadramento, mas teria sido uma boa opção editorial.
      Quanto ao formato, é igual ao da edição original espanhola, embora tenha menos 8 páginas, cujo conteúdo desconheço.
      Boas leituras!

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