24/03/2021

Tales from Afar #1

Eram os fanzines (1/3)


Quando comecei a dedicar-me à banda desenhada - para além da minha posição de leitor - as publicações, grosso modo podiam dividir-se em três tipos: álbuns (segmento em crescimento), revistas (em declínio) e fanzines.
Estes últimos, tinham na época a seguinte definição (mais ou menos) consensual: 'publicação independente, sem fins lucrativos, destinada a divulgar o trabalho de novos autores'.
Hoje, tudo mudou. Os álbuns predominam, as revistas acabaram e os fanzines encontraram novas formas. Entre elas, a publicação digital.

Esta última, tem (pelo menos) duas grandes vantagens: (quase) não tem custos associados, logo não implica investimento financeiro do(s aspirantes a) autor(es) e pode facilmente chegar aos potenciais interessados - ainda mais quando utiliza o inglês como base.


Foi assim na óptica de fanzine que abordei o número inicial de Tales from Afar, onde encontrei - naturalmente - propostas criativas em estádios diferentes. Ou seja, autores já com algum traquejo a par de outros com muito para andar.

Globalmente, aponto como negativo algo que (já) não gostava de ver nas publicações em papel: histórias em continuação, cujo seguimento - então como (menos) agora - pode ser difícil de conseguir. Pela eventual (in)disponibilidade dos capítulos anteriores - facilitada no modo digital, muito difícil quando era o papel o suporte - e pela insegurança da sua continuação - e conclusão - pelo(s) autor(es). Sei que quem começa aspira geralmente a contar grandes histórias, mas por alguma razão, na época das grandes revistas, os jovens autores começavam por narrativas curtas: para avaliação do traço, da planificação e, principalmente, da capacidade de contar histórias coerentes e completas.

Percebo que a extensão de algumas obras pudesse tornar complicada a publicação integral, mas a sua divisão em capítulos torna difícil um julgamento justo. Obviamente percebo que no caso da edição digital, será fácil no final disponibilizar pelo mesmo modo - ou até em papel... - a versão completa, mas daqui até lá...

É o que se passa, na abertura deste número inaugural dos Tales from Afar, com Hypnotopia, de Ricardo Baptista: a duplicidade realidade/sonho cria um bom ponto de partida, o relato é suspenso de forma a criar no leitor a curiosidade pela continuação, graficamente o trabalho está bem conseguido, ao nível da planificação, da cor e do traço, embora este pedisse, aqui e ali, menos rigidez e mais diversidade de expressões.

A BD seguinte, Grotesque Jarcha for La Mancha, é uma curiosa variação de Carmen Gimeno sobre o D. Quixote de Cervantes, que mais uma vez nos deixa interessados em conhecer mais. Graficamente, as limitações de Ramón Perales Cano são mais evidentes - daí o recurso a uma planificação com poucas vinhetas/tiras e grandes planos (que não o favorecem), embora as vinhetas que estão mais trabalhadas mostrem que existe potencial. Agora, como no tempo do papel, há que saber dedicar o tempo necessário às obras, por muito que a publicação seja (sempre) o grande objectivo.

Polydipsia, de Daniel da Silva Lopes, apresenta as mesmas limitações: uma continuidade - que até poderia ter sido evitada a certo ponto do relato, reforçando a dualidade sonho/real - uma planificação de limites demasiado amplos - a que o digital, com a possibilidade de aumento da imagem não ajuda - e um traço a precisar de mais prática, na composição de formas e fundos.

My Fisrt Sunset, de Perplexed Sea, revela-se demasiado ambígua, para não escrever difícil de interpretar, quer no seu todo, quer nalgumas das sequências que apresenta. Necessitava de ter sido melhor trabalhada, gráfica e narrativamente.

Para terminar, Cloven Heart, de Dean Kerrigan, se inicialmente foi a que mais me agradou em termos de traço - aparentado à linha calara - na prática revela limitações imilares às já apontadas, aproxima-se mais do texto ilustrado do que da BD e, tal como a anterior, não foi capaz de me prender e deixar a desejar mais.


Uma nota final: quem edita - em papel ou em digital - tem uma tarefa mais complexa do que a simples paginação[, impressão], divulgação e lançamento. Deve também apontar, corrigir, devolver para introdução de melhoramentos.


Tales from Afar #1
Ricardo Baptista, Ramón Perales Cano e Carmen Gimeno, Daniel da Silva Lopes, Perplexed Sea e Dean Kerrigan
Gorila Sentado
Portugal, Março de 2021
Publicação digital (clicar aqui para aceder)
2,99 €

(imagens disponibilizadas pela Gorila Sentado; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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