28/04/2021

Peter Pan #2: Opikanoba

Em direcção ao abismo...


Todas as histórias são verdadeiras, sobretudo aquelas que nos damos ao trabalho de imaginar…’

In Peter Pan #2: Opikanoba


E que imaginação demonstra Régis Loisel nesta sua versão - doentia e absurda, ouço alguns a dizer… - que subverte o(s) Peter Pan que todos (re)conhecemos, num segundo tomo que parece conduzir os participantes - e os leitores… - inexoravelmente para o abismo.

Porque, como diz Pan, ‘(…) será preciso assumir as nossas histórias, os nossos sonhos, os nossos delírios e os nossos fantasmas’.

Porque, mesmo que nós não o façamos - nos recusemos a fazê-lo - Loisel fá-lo por nós. Senão, vejamos: a (outrora) doce Sininho, é agora uma rechonchuda fada sumariamente vestida - despida? - ‘(…) rancorosa, susceptível, ciumenta, exclusivista, colérica…’ Possivelmente, não tão distante das de Barrie ou Disney, embora revelada aqui com uma crueza provocadora.

Peter, o mendigo das ruas de Londres acabado de chegar à Terra do Nunca é um miúdo volúvel, inconstante, disposto a trocar tudo pelos seus sonhos de criança egoísta e habituada a não ter nada.

E Pan - e aqui convém fazer um ponto de ordem: nesta versão de Loisel, existe um Peter e um Pan, numa curiosa separação e dualidade... - este último, o sátiro com papel determinante no relato, que esconde interesses que o seu altruísmo por agora mascara.

Depois, na tão sonhada Terra do Nunca, local paradisíaco onde aparentemente tudo correria bem, há piratas sanguinários, capitaneados por um Gancho cruel e prepotente, há sereias sedutoras e verdadeiramente fatais, há fadas nuas, índios vitimados sem complexos, num relato que, da passagem do tomo 1 para o 2, subiu de tom no que à violência explícita e às alusões sexuais diz respeito.

Não de forma gratuita ou com o intuito de chocar, apenas e tão só - só…? - porque foi essa a opção narrativa de Loisel, apostado em dar um tom adulto e mais profundo, provocador e trágico, à reflexão original de Barrie sobre a recusa de crescimento de um simples rapaz.

Finalmente, ainda neste tomo 2, existe uma longa sequência que decorre no Opikanoba do título - um território mergulhado numa bruma em que os mais indizíveis pesadelos ou sonhos loucos se transformam numa violenta e incontrolável realidade. Assim como se tudo aquilo que nós tememos - dos temores infantis aos receios adultos -, as maiores loucuras que somos capazes de imaginar em momentos de fúria ou os ódios latentes que vamos alimentando no mais profundo da nossa mente, n0 Opikanoba se soltassem finalmente, tivessem lugar à desfilada, dando largas ao pior de nós mesmos, encaminhando-nos para o pior dos abismos, aquele que existe dentro de nós. Como exemplo evidente, cruel e revelador, observe-se o sonho de Peter com a mãe, imagine-se toda a frustração, todo o ódio, toda a rejeição necessários para chegar àquele ponto limite, ao limite do abismo…

Terminada a leitura, emocionalmente esgotados, somos obrigados e reconhecer a genialidade desta leitura de Loisel, por muito assustadora e incómoda que ela nos possa soar.


Nota final

Prometi no texto anterior uma análise da edição da ASA, uma vez que a leitura de Londres - tal como a deste Opikanoba - ainda foi feita na edição da Bertrand Editora dos anos 1990.

De formato ligeiramente superior - nuns poucos milímetros - ao utilizado pela Bertrand (volumes 1 e 2) e pela Booktree (volumes 3 e 4), sem que isso signifique aumento da mancha da pranchas nas páginas, a edição da ASA naturalmente segue a mais recente versão original. Perdeu, por isso, os inestéticos contornos verdes nas capas, o que confere maior destaque às belas ilustrações, apresenta um logótipo mais moderno e um grafismo interior mais arejado, em termos de página de abertura. Perdeu, infelizmente, as páginas de guarda e, no que respeita à legendagem, preferia a da Bertrand, menos ‘mecânica’ que a da ASA, embora mesmo assim inferior à original do autor.

Uma referência final - por ser raro entre nós - para a utilização, na contracapa, pela Bertrand, de citações extraídas de artigos (sobre o volume inicial) publicados na imprensa portuguesa na época.


Peter Pan #2: Opikanoba
Regis Loisel
Segundo o romance original de J. M. Barrie
ASA/Público
Portugal, 29 de Abril de 2021
240 x 320 mm, 64 p., cor, capa dura
10,90 €

(imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Se me permitem, deixo aqui a ligação ao comentário que fiz ao álbum (às legendas em português) de "Peter Pan" - TEMPESTADE, editado pela "ASA-Público". Ver: https://pensaofinezas.blogs.sapo.pt/peter-pan-de-regis-loisel-6968

    ResponderEliminar
  2. Se me permitem, deixo aqui a ligação ao comentário que fiz ao álbum (às legendas em português) de "Peter Pan" - TEMPESTADE, editado pela "ASA-Público". Ver: https://pensaofinezas.blogs.sapo.pt/peter-pan-de-regis-loisel-6968

    ResponderEliminar