18/05/2021

Lena

Regresso a um passado que é hoje


Pierre Christin é um dos nomes grandes e incontornáveis da banda desenhada franco-belga dos últimos 40 anos. Não só - só?! - pela criação de Valérian, com Jean Claude Mezières, mas também - e principalmente...? - por ter cultivado de forma consistente e credível algo a que se poderia chamar Ficção Política em BD, nomeadamente com Enki Bilal, mas também com outros autores.
Desta forma, o tríptico que a Arte de Autor - muito bem - reuniu neste volume integral significa um regresso a um passado já remoto, mas com temáticas actuais.

Lena, a protagonista, é uma agente de espionagem, que no passado perdeu o marido e o filho num atentado. Trabalhando quando e para quem quer, percorre o globo para tentar evitar atentados do mais diverso tipo.

Os três relatos aqui reunidos - A Longa Viagem de Lena, Lena e as Três Mulheres e Lena em Pleno Braseiro - separados no tempo por década e meia - datam originalmente de 2006, 2009 e 2020 - salientam aspectos diferentes em termos formais, geográficos e de motivação, do terrorismo contemporâneo - frase que soa de forma estranha, reconheço.

Trabalhados por Christin num tom predominantemente narrativo - e introspectivo, especialmente no primeiro álbum, em que o escritor nos traça um retrato mais profundo (e necessário) da protagonista - isso reflecte-se no ritmo calmo e pausado que distingue os relatos, longe do que alguns poderiam pensar em função do tema. Esqueçam por isso cenas com perseguições e tiroteios, combates corpo a corpo, explosões ou espectaculares efeitos pirotécnicos, porque esta abordagem privilegia fundamentalmente as motivações e a preparação dos atentados e dos seus executantes.

Neste último aspecto, o relato intermédio revela-se particularmente interessante porque acompanha o percurso de três mulheres muçulmanas decididas - forma de dizer… - a fazerem-se explodir em nome do profeta. Com motivações - e estados de espírito - diferentes, Christin expõe o processo de preparação que as deverá conduzir até às últimas consequências do acto programado, expondo certezas ou a falta delas, dúvidas, receios e ansiedades que, se não justificam nada, ajudam a compreender aquilo que só estamos habituados a ver nas notícias nas suas derradeiras e trágicas consequências.

A par das diferentes abordagens a uma temática comum, outro aspecto relevante destes três relatos, é o facto de no primeiro Lena surgir como uma globetrotter que percorre meio planeta, enquanto que os dois restantes - em especial o último, Lena em Pleno Braseiro - decorrem (quase exclusivamente) num espaço confinado, o que intensifica os aspectos psicológicos da trama e contribuem para o exacerbar das tensões.

Ao lado de Christin, surge um cúmplice de outras obras, André Juillard que, depois de um início discreto, alcançou o sucesso com Les sept vies de l’épervier, com Patrick Cothias (de que o primeiro dos sete volumes teve edição ASA). Seguiram-se mais alguns álbuns de inspiração histórica, nomeadamente Masquerouge, de novo com Cothias, e Arno, com Jacques Martin (ambas as séries parcialmente publicadas em Portugal pela Edinter), até que Juillard surpreendeu todos como autor completo do belíssimo Le Cahier Bleu, Alph-Art para Melhor Álbum Francês em 1995, a que se seguiria Après la Pluie.

Depois, bem, depois Juillard foi convidado para desenhar Blake e Mortimer e a solidez financeira travou o que parecia o início de uma prometedora carreira a solo...

Felizmente, entre álbuns da fleumática dupla britânica, tem tido tempo para se dedicar a outros projectos mais apelativos, entre os quais Mezek (desta vez com Yann) ou esta trilogia de Lena.

Há muito em lista de leitura - adiada em função da edição portuguesa entretanto anunciada - o que primeiro me chamou nela foram as parecenças entre Lena e a protagonista de Le Cahier Bleu, quase parecendo que a dúzia de anos que mediou entre ambas não existiu para o desenhador. O traço de Juillard é a um tempo muito elegante, sóbrio e realista, podendo ser-lhe apontado alguma rigidez ou, mais exactamente, falta de dinamismo e capacidade de transmissão de movimento, mas a verdade é que se revela extremamente eficaz para acompanhar o registo contido e assertivo de Christin, proporcionando assim um mergulho mais longo e entranhado numa temática incómoda, mas incontornável nos dias de hoje, que não conhece ideologias nem fronteiras.


Lena - Edição Integral
Inclui os álbuns A Longa Viagem de Lena, Lena e as Três Mulheres e Lena em Pleno Braseiro
Pierre Christin (argumento)
André Juillard (desenho)
Arte de Autor
Portugal, Maio de 2021
240 x 315 mm, 172 p., cor, capa dura
31,00

(imagens disponibilizadas pela editora Arte de Autor; clicar aqui para apreciar outras pranchas ou nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

8 comentários:

  1. Simplesmente imperdível. Mais uma escolha criteriosa e muito feliz da Vanda Rodrigues/Arte de Autor.Tanto Christin como Juillard são dos meus autores preferidos.Servindo este prato delicioso logo em três doses fica toda a gente satisfeita. É uma excelente opção. Permite-me discordar da sua análise ao traço de André Juillard.É muito redundante essa impressão de rigidez

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, uma excelente escolha da Arte de Autor.
      Quanto à rigidez e ao resto, concordo em discordarmos, nunca foi minha intenção ser detentor de verdades absolutas.
      Boas leituras!

      Eliminar
  2. Julliard faz-me lembrar Ted Benoit, a arte do "Homem de nenhures".

    De qualquer forma isto é tudo herdeiros da linha clara franco-belga.

    Não sei se compro, parece que a 3ª parte é fraquinha.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Gosto dos dois, do Benoit e do Juillard - talvez até mais do Benoit... - mas acho-os artistas diferentes, embora unidos pela linha clara.
      Quanto às histórias deste integral, destaco as muitas diferenças que apresentam, apesar da temática comum. Da última, gostei do facto de se passar quase na íntegra num espaço fechado, o que permitiu explorar outras questões e criar uma maior tensão. Mas é só a minha opinião...
      Boas leituras!

      Eliminar
  3. Gostava de aproveitar a oportunidade para dar os parabéns e agradecer a 2 editoras (Arte de Autor e Ala dos Livros), cujos livros de banda desenhada primam pela qualidade gráfica e não só e sem as quais, este tipo de publicações (em língua portuguesa), não veriam nunca "a luz do dia".

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sem dúvida que a Ala e a Arte merecem parabéns, mas não se deve esquecer a (outro nível menos vistoso, pela menor dimensão das obras) a G. Floy e A Seita.
      Aliás, genericamente, também pelas potencialidades que a tecnologia proporciona, hoje em dia - também em Portugal - se edita muito melhor...
      Boas leituras!

      Eliminar
  4. Gostei muito do desenho e particularmente das várias "personagens" que vão surgindo em segundo plano, mas também (e com alguma frequencia) em primeiro plano, sem terem qualquer importância no desenrolar da estória.

    ResponderEliminar