28/03/2022

Santa família

Opções narrativas





Sinto que poderei estar a nadar contra corrente (que se irá formar) mas este Santa Família, dividido entre o realismo absoluto e a alegoria fantástica, acaba por não ser nem um, nem outra e, por isso, deixou-me um sabor, se não amargo, no mínimo, a pouco.

Vamos situar-nos: primeira obra resultante da (nova) parceria entre A Seita e a editora espanhola Grafito, Santa Família centra-se no agregado constituído por Sorkunde, dietética e catequista, Teodoro, electricista e aspirante a engenheiro, e por Nora, a filha adolescente de ambos.

Apresentados - os pais - com humor e um olhar crítico, a primeira parte do álbum versa sobre modas e maniqueísmos da nossa sociedade, de forma bem disposta e em linha com o traço caricatural hiper-expressivo utilizado por Julen Ribas - com um belíssimo trabalho gráfico ao longo de todo o álbum. As dietas, a idade e a imagem (enquanto elementos complementares do viver em função do parecer mais do que do ser), a religião, as ambições desmedidas, as desigualdades entre o primeiro mundo e os outros, as mudanças que a chegada dos filhos introduzem são as questões abordadas pela jornalista Eider Rodriguez nesta sua primeira incursão na BD, cuja linguagem mostra dominar.

[Possivelmente a partir daqui vou revelar um pouco a mais sobre o enredo do que deveria, mas não encontrei outra forma de o fazer. O ideal será lerem o livro - o que escrevi acima não deve afastar-vos dele - e depois voltarem a este texto.]


Depois, com o crescimento de Nora - mais exactamente com a sua entrada na idade adulta (seja lá isto o que for e tão difícil de determinar) - o registo de Santa Família muda de forma drástica, e o realismo até aí exibido transforma-se - até graficamente e a (bela) capa já o antecipava - numa alegoria com desproporcionados toques de fantástico - claramente deslocados no tom do que até aí nos tinha transportado.

É evidente que compreendi a intenção dos autores, que esse trecho espelha o choque geracional, mais do
que isso, as diferenças muito profundas que actualmente
- como sempre? - separam gerações - mais a mais quando os pais seguem um modelo tradicional e a filha vive de forma muito aberta - mas, reitero o que escrevi, a mudança de tom - de registo, mesmo - não me convenceu e julgo-a desnecessária. Acredito até que a intenção dos autores - na minha interpretação... - seria melhor concretizada se o registo realista se mantivesse ao longo de todo o álbum, até porque ele acaba por ser retomado e a história (inicial...) seguir o seu caminho. Inclusive porque, dessa forma, um dos aspectos que falta na narrativa - uma reacção mais sólida e completa de Sorkunde e Teodoro às opções de Nora e uma confrontação mais clara entre os três - poderia ter sido melhor trabalhada.

Assim, esta história sobre relacionamento familiar e passagem do tempo, sobre opções de vida e o que elas introduzem ou retiram a cada um, (para as expectativas que me criou) fica aquém do que poderia ter atingido.


Santa família
Eider Rodriguez (argumento)
Julen Ribas (desenho)
A Seita
Portugal, Março de 2022
230 x 320 mm, 48 p., cor, capa dura
16,50 €

(imagens disponibilizadas por A Seita; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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