24/05/2023

Auto da Barca do Inferno

À barca, à barca, hu-u!’



Último volume (cronológico, que não de lançamento, pois o tomo #29 Os Desastres de Sofia só será distribuído no final do mês) da segunda série da colecção Clássicos da Literatura em BD, este Auto da Barca do Inferno é, também, a terceira adaptação de uma obra literária portuguesa no seu âmbito, facto que nunca é demais realçar, pelo que significa de aposta por parte da Levoir.

Depois de Os Maias, de José de Freitas e Canizales (que estará no Maia BD, de 16 a 18 de Junho) e de Amor de Perdição, de João Miguel Lameiras e Miguel Jorge, coube agora a vez de olhar para aquele que foi, possivelmente, o mais ousado e incómodo dramaturgo nacional, Gil Vicente.

Sendo o original obra obrigatória no 9.º ano de escolaridade, quase não seria necessário resumir aqui o seu conteúdo: junto ao rio que conduz ao Além, duas barcas, a do Paraíso e a do Inferno, aguardam por passageiros, supervisionadas pelos respectivos remadores: um anjo e um demónio. No entanto, nem todos os falecidos encontrarão lugar na barca pretendida, para surpresa deles - e de alguns leitores…

Seguindo a matriz católica romana omnipotente então - como (um pouco menos) agora - no nosso país, Gil Vicente faz desfilar uma série de personagens estereotipadas, representativas de classes ou profissões - o religioso, a alcoviteira, o magistrado, o fidalgo, o comerciante… - apontando defeitos e desvios que os impedem de se encaminharem para o paraíso como pretendiam e lhes prometia a (de mãos bem untadas) igreja dominante.

Dado o tom mordaz e satírico original, o desenho caricatural de Joana Afonso caiu que nem uma luva, reforçando alguns aspectos corporais e uma hiper-expressividade que realça a surpresa, a ira ou o desgosto por que vão passando sucessivamente os protagonistas. Para além disso, a autora conseguiu ir alterando sucessivamente as tomadas de câmara numa narrativa que, literalmente, decorre sempre no mesmo local.

Sem espaço para surpresas narrativas ou alterações de fundo, como ganho adicional, usando um estratagema já presente em Amor de Perdição, J.M. Lameiras nalgumas páginas (por vezes duplas) opta por uma vinheta única através da qual circulam as personagens, o que ajuda a ritmar a leitura e a suavizar os inevitáveis excessos de texto que uma obra como esta sempre apresenta.

Arriscando-me a ser apontado como herege ou blasfemo e percebendo o risco que seria corrido e o rol de críticas que despertaria, atrevo-me mesmo assim a escrever que este Auto da Barca do Inferno tinha tudo a ganhar se a sua linguagem tivesse sido actualizada para os nossos dias, o que contribuiria para uma maior fruição da leitura e para a tornar mais dinâmica e até compreensível, especialmente numa colecção que tem como público-alvo primordial as gerações mais jovens.

...o que, aliás, foi feito na maioria dos 30 volumes desta parceria Levoir/RTP.


Auto da Barca do Inferno
Adaptação da obra homónima de Gil Vicente
Clássicos da Literatura em BD #30
João Miguel Lameiras (argumento)
Joana Afonso (desenho)
Levoir/RTP
Portugal, 16 de Maio de 2023
210 x 285 mm, 64 p., cor, capa dura
13,90 €

(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nesta ligação para descobrir mais pranchas ou nas mostradas aqui para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

5 comentários:

  1. Obrigado pela análise, Pedro. Em relação a actualizar, ou não a linguagem, tive esse dilema. Discuti o assunto com diversas pessoas e, com a excepção de uma, todas acharam que seria uma heresia… Optei assim por manter o texto original, substituindo apenas algumas expressões completamente caídas em desuso por outras mais actuais e metendo uma série de notas explicativas, mas sempre com a preocupação de manter a rima original.Do mesmo modo, tirando alguns cortes cirúrgicos de alguns versos (no monólogo do parvo, por exemplo) mais de 90% do texto original está no livro. João Miguel Lameiras

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    1. Olá João,
      Obrigado pela explicação, que vem ao encontro do que escrevi. Mas pessoalmente acho que foi pena.
      Boas leituras... e bons argumentos para nós lermos!

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  2. A linguagem faz parte do pitoresco da obra, actualizando perde metade da piada, foi uma boa opção, o que não quer dizer que não possa ser editada uma versão com linguagem actualizada para português corrente, esperanto, mirandês, o que fôr.

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    1. Entendo a opção e aceito a opinião diferente, mas acho que se perdeu uma oportunidade de tornar o Auto da Barca do Inferno mais legível e compreensível.
      Boas leituras!

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  3. Tenho de deixar aqui um comentário para futuros interessados, como o livro está selado apenas me dei conta quando cheguei a casa.
    Não sei como estão as vossas edições mas na minha existem para aí meia-dúzia de balões em que o texto está pouco nítido, até mesmo apagado, isto apenas acontece nos balões, tudo à volta está impresso com cores fortes mas alguns balões surgem como se tivessem passado uma borracha nos dizeres e nos contornos dos balões.

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