23/04/2024

A estrada

Pai e filho s
em destino na estrada da morte

Cuidado com o que metes na cabeça.”

In A Estrada


Um homem e uma criança empurram com dificuldade um carrinho de supermercado ao longo de uma estrada. São pai e filho, como descobrimos rapidamente, mas a condição que sem-abrigo que intuíamos para eles revela-se errada. São sobreviventes de uma catástrofe que reduziu a humanidade a pouco mais do que à selvajaria animal e que nunca é explicada e seguem passo após passo em busca da ilusão de um local melhor para viver.

Se há alguns anos Manu Larcenet nos deu um violento soco no estômago com a sua visão de O Relatório de Brodeck (Ala dos Livros, 2021), de Philippe Claudel, agora, nesta recriação de A Estrada, de Cormac McCarthy, se não vai mais longe, consegue igualmente chocar-nos, violentar-nos e deixar-nos de rastos.

Ambientado num futuro indefinido, num planeta Terra devastado, em que apenas se sobrevive - quando possível - A Estrada, que a Ala dos Livros editou em simultâneo com a edição original francófona, é uma daquelas narrativas que apanhamos a meio e que nos deixa antes de ser atingido um fim, em que assistimos ao que resta da humanidade a tentar manter a réstia de humanidade que lhe resta...

Tal como na obra anterior, Larcenet opta por um traço realista, duro, agreste, visceral mesmo, num preto e branco contido mas profundamente revelador, tingido aqui e ali de suaves tons amarelo-alaranjados na chama de uma lamparina ou no metalizado de uma lata de Coca-Cola, breves vislumbres do que um dia foi a vida que apenas tornam mais opressivo o ambiente pós-apocalíptico que ele recria. E recria, sim, porque a sua visão da obra de McCarthy tem muito de pessoal e mesmo original, pois dá forma e feitio ao que o livro apenas descreve, tornando mais palpável, próxima e real a violência, física e psicológica, profundamente incómodas e chocantes, que o leitor prolonga ao preencher o espaço em branco entre as vinhetas que vão desfilando com uma lentidão atroz, pelo prolongar da angústia e da insanidade que transbordam de A Estrada.

A leitura não é fácil, as imagens são chocantes, não gratuitamente mas de uma forma que demonstra a destruição, a aniquilação de tudo aquilo que nós consideramos vida, a imagem da luta insana pela sobrevivência sem a perda da sanidade, a preocupação de manter duas balas, se tiver de matar o filho quando o momento chegar...

Ao contrário de outras obras cujo tom vai num crescendo, em A estrada Larcenet consegue manter sempre alta a ansiedade, o incómodo desmedido, a angústia que nos retiram qualquer esperança, se não de um final não feliz, pelo menos de algo capaz de nos deixar bem com a humanidade.

Como diz a criança, mais do que uma vez, eles são ‘bons’, mas também há maus. Aos nossos olhos, o que os distingue, é se já cederam completamente à selvajaria latente… ou ainda não.


A Estrada
Manu Larcenet, segundo o romance de Cormac McCarthy
Ala dos Livros
Portugal, Abril de 2024
242 x 298 mm, 160 p., cor, capa dura
32,90 €

(versão revista e ampliada do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 13 de Abril de 2024 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais ou nas aqui reproduziadas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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