Reconhecido
‘Não
há nenhum velho louco nesta história, Mathias...Apenas um homem
idoso sozinho diante da morte...’In
Mille
anos pour une agonie
O recente falecimento de Christian Godard, levou-me a pegar no segundo integral de Martin Milan, a sua maior criação. Há muito na pilha de leituras a fazer, juntamente com o volume #3 e a aguardar pelo #4, foi a possibilidade de reler uma das mais singulares e tocantes séries da banda desenhada clássica franco-belga.
Já escrevi algumas vezes sobre as vantagens dos integrais: publicação (geralmente) cronológica, o que permite apreciar a evolução da série e do autor; recuperação das histórias curtas que normalmente não estão disponíveis em álbum - e Martin Milan tem um belo leque delas; a complementaridade do dossier que (geralmente, outra vez) baliza e contextualiza a série na sua época e local de publicação...
Tudo isto à parte, este integral por si só valeria pela sua última história, a sublime Mille anos pour une agonie (Uma agonia de mil anos, na versão portuguesa da Livraria Bertrand, que ainda aparece regularmente pelos mercados de segunda mão e cuja procura aconselho a quem não o tem e não lê francês).
Sob a falsa capa da aventura e do humor, Martin Milan, piloto de um avião-táxi a desfazer-se, o famoso Velho Pelicano, que devido aos fretes que consegue visita os lugares mais exóticos, transcendeu tudo que até então aquilo que hoje chamámos de 'banda desenhada clássica franco-belga' tinha proposto aos seus leitores. Com ele, Godard - apoiado pelo visionário Greg - em relatos cujo rumo inesperado surpreende sempre, abordou temáticas sérias e marcantes como a amizade, o amor ou a morte, incontornáveis na vida de cada um dos leitores.
Nisso, Mille anos pour une agonie, é exemplar. Tendo como ponto de partida uma marajá que sente que os seus dias estão a chegar ao fim e tenta contornar essa inevitabilidade construindo uma câmara de congelação que lhe permitirá acordar um milénio mais tarde, quando a ciência (supostamente) já terá vencido a morte, parte para um relato recheado de um humor simultaneamente terno e negro - com a Morte, ela própria, alérgica a simples insecticida, a protagonizar momentos irresistíveis. Apesar disso - ou também por isso, pela forma como relativiza as coisas - é um relato sensível, sobre (não saber) envelhecer, medo do desconhecido, solidão e vazio, temas que se cruzam com o tal humor, um certo espírito de aventura e a forma como Martin, igual a si próprio, fleumático e aparentemente frio e distante, revela um enorme coração e uma compreensão da finitude da vida que são a um tempo avassaladores e extremamente humanos.Para prazer redobrado do leitor, antes daquele relato que encerra este segundo integral, ele contém ainda outras duas pérolas: Il s'appelait Jérôme e L'impossible à portée de la main, o primeiro sobre uma amizade indefectível que vinha desde a infância e o segundo sobre um amor impossível.
Se Godard nos deixou fisicamente há uma semana, o seu espírito continua a viver através da sua obra e a melhor homenagem que todos aqueles que fomos tocados pelas suas criações podemos fazer-lhe, é voltar a Martin Milan, reconhecidos e agradecidos, pela forma como nos distraiu, divertiu e fez pensar.
Martin
Milan pilote d’avion-Taxi
Intégrale
#2
Christian
Gordard
Le
Lombard,
França,
2019
225
x 295 mm, 208
p., cor, capa dura
34,95€
(imagens disponibilizadas pela Le Lombard; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Boa tarde Pedro
ResponderEliminarApreciei esta sua homenagem a Godard e ao seu excepcional Martin Milan: uma das melhores obras da BD franco-belga, mas que infelizmente nunca teve a popularidade de um Astérix ou de um Lucky Luke. E compreende-se porquê: foi a BD que nos anos de ouro da Bd franco-belga, melhor explorou temas humanísticos, quando a maior parte dos leitores preferia (e prefere) as vertentes da aventura e do humor. O próprio Pedro aponta alguns exemplo no seu texto como a amizade, o amor, a morte, entre outros. Quando li Martin Milan pela primeira vez na saudosa revista Tintin, rapidamente se tornou um dos meus favoritos e costumo relê-lo com regularidade pelo grande prazer que me proporciona. Paz à alma de Godard e muito obrigado por uma obra excepcional.
GP
É verdade que Martin Milan nunca teve a popularidade de Astérix ou Lucky Luke - nem poderia, possivelmente. Mas fiquei supreendentemente agradado com a forma como foi tantas vezes evocado, de modo sentido, a propósito do falecimento de Godard.
EliminarBoas leituras!
Depois partilhe aqui no blog as suas impressões dos integrais 3 e 4 do Martin Milan. Para mim, as histórias do integral 3 são as melhores e as do 4, as menos boas. Mas gostaria de saber as suas impressões.
EliminarUm abraço
GP