17/06/2025

O desassossegado senhor Pessoa

A inquietude do poeta nos seus últimos dias




Novembro de 1935, adivinha-se que o fim da vida de Fernando Pessoa está a chegar e o Diário de Lisboa encarrega Simão Cerdeira, um jovem com aspirações a escritor e jornalista, de cabelos rebeldes e calças de golfe - evocação e piscar de olho a um outro repórter desenhado...? - de preparar antecipadamente o obituário do poeta.

Para isso inicia uma investigação, contactando a irmã, a paixão Ofélia, amigos e conhecidos, e investiga o seu percurso, dos tempos da revista Orfeu até ao presente. Um profundo respeito e a noção dos diferentes estatutos, inibe-o de contactar directamente o poeta.

O que ele não sabe - ninguém sabe aliás - é que em segredo, Pessoa prepara a própria morte. Num misto de desencanto, inquietude e perplexidade, tenta decidir o que fazer aos seus heterónimos: assumir de vez a paternidade dos seus escritos, deixando-os viver à sua sombra ou dar-lhes a liberdade de terem existência própria.

É esta a base de O desassossegado senhor Pessoa, um belo livro que tem edição recente da Levoir e autoria do francês Nicolas Barral que, como já tinha feito no muito aconselhável Ao som do fado (também da Levoir), ambientado no estertor da ditadura, volta a usar Lisboa como palco de um romance gráfico, aqui numa belíssima reconstrução da capital nos anos 1930, perfeitamente reconhecível mas sem que se torne um artifício vazio para tornar mais cativante a obra.

O relato, como ficou sub-entendido, avança a dois tempos: por um lado através da investigação de Cerdeira, metódica, dedicada, assertiva; por outro com o acompanhar dos últimos dias de Pessoa e das suas rotinas quotidianas.

Desta forma, vamos conhecendo progressivamente a sua biografia mas também o desenvolvimento da sua concepção literária que faria posteriormente a sua glória. Barral permite-se alguma liberdade ficcional, no ajuste de personagens e situações às exigências da narrativa, sem que que isso de algum modo choque ou subverta a verdade histórica, balizada por factos, explicações e referências introduzidos de forma leve e natural, sem prejuízo do ritmo de leitura.

Num e noutro caso, nas entrevistas do jornalista e na vida de Pessoa, Barral utiliza pranchas de tom único para marcar os retrocessos que a narrativa faz ao passado, o que ajuda o leitor a distinguir esses momentos e a fruir de forma mais completa esta narrativa fiel a Pessoa, à sua obra, à sua vida - ou, talvez, melhor, às suas vidas, a dele e a dos heterónimos que criou, a quem deu vida e emancipou - num acompanhamento dos seus últimos dias que Barral narra de forma respeitosa e sensível.


O desassossegado senhor Pessoa
Nicolas Barral
Levoir
Portugal, Maio de 2025
195 x 270 mm, 137 p., cor, capa dura
26,90 €

(versão revista do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 6 de Junho de 2025 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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