Fados
Sendo a minha única referência de Barral a (divertida) série As aventuras de Philip e Francis (uma bem conseguida sátira a Blake e Mortimer), confesso que não estava preparado para a descoberta que se constituiu este Ao som do fado, a segunda incursão, na colecção Novela Gráfica 2020, no período da ditadura portuguesa em geral, e da actuação da PIDE em particular.
Aliás, não deixa de ser curioso que sendo esse período (da ditadura, mais especificamente os seus anos finais) potencialmente ricos, em termos narrativos, a vários níveis, sejam tão poucas as abordagens que lhe são feitas pela banda desenhada nacional, apesar de dois exemplos recentes: Os Vampiros e Filhos do Rato.
Porque - entremos então no livro - Ao som do fado abre com a famosa queda da cadeira por Salazar - como elemento introdutório e alegórico de fundo, mas também base de diversas piadas na própria sede da PIDE - e decorre todo ele em plena ditadura salazarista, embora com alguns saltos temporais entre aquele período e a agitação estudantil em Coimbra na esteira da candidatura à presidência da república do General Norton de Matos, no final dos anos1950. Na prática, embora com hiatos, é uma década da ditadura que nos é exposta, através de alguns elementos chave - mesmo que estereotipados - da PIDE aos movimentos contestatários, da oposição silenciosa à militância activa.
O protagonista é Fernando Pais, um médico e mulherengo, proveniente de uma família partidária do regime, que viveu a experiência da guerra colonial na Guiné, já depois de - por amor(es) - ter participado nos movimentos estudantis, e que é chamado com frequência à sede da PIDE para atender vítimas de maus tratos - ou as necessidades dos próprios agentes.
Apesar da empatia imediata que desperta, não deixa de ser uma personagem dúbia, movida pelos interesses (amorosos) do que pelos ideais - humanistas, políticos - que poderia defender e fariam dele uma figura (ainda) mais simpática, mas que tem nessa dualidade a sua mais forte característica humana, acentuada pelos desvios de percurso que vai fazendo.
Com ele, contracenam duas bonitas mulheres - Marisa e Ana e que bem que Barral as desenha! - João, o miúdo irmão desta última, e, acima de tudo, Horácio, amigo desde sempre, ombro disponível para os momento menos felizes, cúmplice contrariado de todos os esquemas conquistadores de Fernando e seu confidente.
Com eles, Nicolas Barral traça um retrato de uma época dominada pelo medo, apesar de alguns ténues sinais de esperança, que se torna extremamente credível quer pelo lado humano (e incoerente) do protagonista, adjuvantes e figurantes, quer pelos pequenos nadas que vai espalhando com naturalidade por todo o relato - a partida dos miúdos a abrir, as consultas aos agentes da PIDE, as conversas inconsequentes, os pequenos gestos detalhados em grande plano, os pormenores paisagísticos de uma Lisboa antiga que é também protagonista da obra... e que Barral nos mostra por vezes luminosa, mas maioritariamente em tons de ocre mais soturnos, num belo trabalho de cor adequado aos momentos narrativos.
Graficamente, o traço de Barral, realista mas com ligeiros toques caricaturais - que, acredito, servem para atenuar zonas pontuais de menor à-vontade - revela-se perfeito para um relato em que se sente um evidente envolvimento pessoal e uma enorme capacidade de mostrar sem afirmar, deixando muita da interpretação - principalmente do que fica subjacente - ao cuidado do leitor.
Foi uma boa surpresa este livro, tão bem desenhado e numa época histórica tão rica para a imaginação de um argumentista, que só tenho pena que sejam poucos os autores portugueses que peguem nela. Apesar de muito bem desenhado existem aqui alguns pequenos pormenores que escapam ao autor sobre aquela altura, como os eléctricos deste modelo da Carris, que não tinham portas automáticas, mas sim as cancelas de madeira tipo fole e o a Rua Augusta dos dias de hoje fechada ao transito, mas são apenas alguns pormenores que em nada tiram o excelente trabalho apoiado com certeza em documentação da época da ditadura.
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