Não se morre aos 11 anos
Todos sabemos o que é a morte. Todos pensamos que está reservada para os idosos, para os mais idosos, para quem já viveu... para os outros, talvez.
A 5 de Agosto de 1976, JeanLouis Tripp, estava de férias na Bretanha, com a família. Viajavam numa caravana, puxada por cavalos, tal como Os Cinco nas aventuras que muitos de nós lemos na adolescência. A certa altura, quando um dos seus irmãos mais novos, de 11 anos, se preparava para descer, foi atingido por um carro que circulava em sentido contrário e viria a falecer em consequência dos ferimentos sofridos.
E apesar da brutalidade da sequência do atropelamento, logo nas primeiras páginas, o leitor está longe de imaginar o quão penosa, dura e lancinante se irá tornar a leitura, pelo modo como o narrador - o próprio Tripp - vai partilhar a dor excruciante que o acontecimento provocou.
[Pequena interrupção para alertar que o texto que se segue pode conter algumas revelações excessivas, mas a escrita ao correr da leitura tornou-o assim.]
O meu irmão, uma edição superlativa da Ala dos Livros - em termos de qualidade enquanto objecto livro, superior até à edição original francófona - recém-publicada, para o autor funcionou como "um bálsamo apaziguador das dores do passado" - que o final, com o aparecimento da cor nas pranchas simboliza, mas, para o leitor, é uma proposta emocionalmente arrasadora.
Ao longo deste volumoso e denso relato, Tripp vai narrando os diferentes estados de espírito por que passou, por que passaram a mãe, o irmão mais novo, o pai: a crueza com que o falecimento foi comunicado; o reencontro dos pais divorciados; o dia passado a jogar Monopólio para iludir as memórias; o velar o caixão com o corpo durante três noites e dois dias por o acidente ter acontecido a uma sexta-feira; o peso aterrador das cerimónias fúnebres devido ao peso social do culto dos mortos; as 12 horas de trajecto, com o caixão, para o seu destino; o vazio imenso que o irmão (e filho) deixou; o modo como cada um, à sua maneira, (não) lidou com a ausência e a dor; o sentimento de impotência, de culpa que cada um experimentou; a forma indiferente como o culpado reagiu...
...e, depois, todo o formalismo de uma sociedade que vivia o culto da morte: comprar comida para as visitas, comprar roupa decente e apropriada, fazer a barba - como se a morte pesasse menos assim ou como quem diz que a vida continua... Embora me soe a tentativa de enganar a realidade.
O interminável caminho pelas ruelas do cemitério, página após página, com a dor latente, a pesar cada vez mais, a arrasar o leitor, mesmo assim longe do que o autor, a sua família com certeza sentiram...
E tudo isto é entrecortado, uma e outra, e outra vez, pelo gesto também presente na capa e que define o momento do choque, a separação definitiva, o instante em que o irmão soltou a mão do autor - em que o autor soltou a mão do seu irmão - expondo, chocando, incomodando, violentando uma e outra vez o leitor, porque cada repetição volta a recordar aquele momento, volta a torná-lo real uma e outra vez.
E enquanto Tripp vai desfiando as memórias, enquanto as vai conferindo, online, com a mãe, durante a realização do livro, as palavras pesam, incomodam, evocam momentos de despedida que todos nós já vivemos...
...mas nada que se compare ao ruído ensurdecedor das sequências mudas*, em que ouvimos, atormentados, os gritos, o choro, a revolta, a dor nos lábios de cada um, embora eles só ressoem na nossa mente.
* A este respeito, veja-se também como o autor - com Régis Loisel -já tinha usado com tanta mestria os silêncios na belíssima série Armazém Central.
O
meu irmão
JeanLouis
Tripp
Ala
dos Livros
Portugal,
Maio de 2025
210
x 285 mm, 356
p., pb
e cor, capa dura, com fita marcador
47,00
€
(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 19 de Julho de 2025; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Duro, muito duro, mas sublime. Parabéns à Editora por esta publicação
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