A vertigem das paixões como base criativa
Diz-se que a capa de um livro é a sua porta de entrada, por isso deve ser chamativa. A de Anaïs Nin no mar das mentiras, sexto volume da colecção que a Devir dedicou a obras premiadas em Angoulême, cumpre plenamente esse propósito.
Por um lado, ilustra a dualidade da protagonista, na sua dupla representação, entre a contenção e a exposição, entre a simplicidade do traço e o vigor da cor. Por outro, num e noutro caso, revela a sua capacidade de sedução através de um simples olhar.
Biografia livre da escritora de literatura erótica residente em França nos anos 1930, é assumida na primeira pessoa pela autora, Léonie Bischoff, o que lhe confere uma força narrativa que o olhar de um cronista externo não teria conseguido.
Anaïs Nin no mar das mentiras é a história de uma mulher presa dentro de si mesma, durante muito tempo limitada pela sua educação católica e pelas convenções sociais, utilizando o seu diário como escape para os seus sonhos, os seus anseios, os seus desejos e a sua intensa pulsão sexual. O momento de viragem surge quando conhece o escritor Henry Miller e a sua escrita transgressora, iniciando uma relação que, com ele e depois outros, a levará a quebrar todos os tabus, regras e preconceitos sociais. Apesar de tudo - e este tudo é imenso - o relato consegue manter-se extremamente púdico, referindo apenas muito mais do que mostra, mas podendo mesmo assim revelar-se extremamente chocante para alguns, pela forma como expõe uma mulher que apenas queria descobrir-se para viver plenamente e conseguir assim libertar a sua escrita.
Uma das grandes forças do livro é o seu grafismo, assente num traço fino e delicado que realça a fragilidade mas também a feminilidade de uma mulher extremamente sedutora, dividida entre as suas paixões e a arte. O trabalho de cor de Bischoff é notável, maioritariamente aplicada apenas nos contornos das figuras e cenários, noutras mudando de registo em função dos momentos e sensações que a protagonista experimenta ao longo de um trajecto iniciático que a levará progressivamente às mais intensas experiências eróticas.
Da leitura, fica na memória a cena em que Anaïs se vê reflectida nos pedaços de um espelho partido, representando admiravelmente a sua multiplicidade íntima.
Anaïs
Nin no mar das mentiras
Léonie
Biscoff
Devir
Colecção Angoulême
Portugal, Outubro de
2025
170
x 240 mm, 192
p., cor,
capa dura
22,00 €
(versão revista do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 31 de Outubro de 2025 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Devir; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)



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