Um longo passeio pela memória
Sou um anjo perdido, em edição portuguesa da Arte de Autor, é um belo e longo passeio pela memória. Na sua origem e a terminar, pela memória, as memórias, do autor, Jordi Lafebre. A terminar, porque é no posfácio que Lafebre confessa os seus medos de infância e adolescência na sua Barcelona natal, que lhe serviram de ponto de partida para este relato que tem aquela cidade como cenário e personagem de relevo.
E na sua origem, porque foi delas que partiu para construir um policial divertido e ao mesmo tempo incómodo, que traça um retrato assertivo de estratos da nossa sociedade: os prepotentes e os indefesos; as estrelas de futebol e as prostitutas; a dependência da psiquiatria e a dificuldade de lidar com a diferença; os neonazis e a violência gratuita. Mas cuidado, não tentem enfabular com base nestas pistas, porque o relato, sem se desviar demasiado do que elas sugerem e do que delas se pode inferir, vai bem além dessa história banal.
E passeio pela memória, ainda, porque Sou um anjo perdido é um longo e recorrente regresso à última semana que a protagonista viveu, que vai contando - às autoridades policiais e ao seu psiquiatra (e também a nós, leitores) - passo a passo, mesmo que por vezes de corrida, tudo o que aconteceu nesses 7 dias, do desaparecimento de João dos Mundos, estrela emergente no universo futebolístico, à morte do neonazi Riqui, enfiado de cabeça para baixo, até à cintura, num bloco de cimento fresco...
Memória, também - e possivelmente antes de tudo - porque Sou um anjo perdido recupera, oportunamente, como protagonista volúvel, voluntariosa e imprevisível, a jovem psiquiatra Eva Rojas, nascida em Sou o seu silêncio, mais uma vez 'armada' em detective. E armada, igualmente, com as memórias femininas familiares, de avós e tias falecidas mas cujas imagens e vozes vê e ouve - e nós com ela - o que contribui para conferir à narrativa, em simultâneo um tom estranho, divertido, introspectivo e emocional.
O recuperar e estreitar de relacionamentos do álbum anterior, o estabelecer de novas relações e o alargar do círculo familiar de Eva, deixam pressupor que aquela que era para ter sido personagem de uma história única poderá regressar.
E, finalmente, ao mesmo tempo, o final aberto, contribui para que Sou um anjo perdido não nos saia da memória, levando-nos a querer imaginar uma resolução à altura de uma história cativante e sedutora, desenvolvida de forma envolvente e aliciante, que confirma Jordo Lafebre como um autor completo a seguir atentamente.
Sou
um anjo perdido
Jordi
Lafebre
Arte de Autor
Portugal, Outubro de
2025
225 x 298 mm, 128 p.,
cor, capa dura
29,50€
(versão revista e aumentada do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 21 de Novembro de 2025 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nesta ligação para ver mais ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)



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