Uma tragicomédia dos nossos dias
Costuma dizer-se que o importante não é a história que se conta mas sim a forma como é contada. E, em A cor das coisas, de Martin Panchaud, que a Levoir editou no recente Amadora BD, com a presença do autor em Portugal, sem dúvida o destaque é a forma como ele narra.
Mas, já lá vou, porque a história em si, uma tragicomédia dos nossos dias, espelho revelador de muitos tiques, manias e desvios das nossas sociedades, também merece relevo. O protagonista é Simon, um jovem obeso de 14 anos, que é constantemente assediado pelos marginais do seu bairro, que o incumbem de tarefas desagradáveis e no limite da legalidade - ou para lá dele. Uma visita fortuita a uma vidente, vai levá-lo a ganhar 16 milhões de libras numa aposta numa corrida de cavalos, ao mesmo tempo que a mãe é agredida e fica em coma e o pai desaparece de casa, concretizando a anunciada desagregação familiar que ele espoletou.
Sendo menor, Simon não pode levantar o dinheiro que ganhou, tornando-se um alvo preferencial para todos com quem se cruza, após a sua história ser divulgada pela comunicação social. Inicia então uma fuga sem destino, com um enorme sentimento de culpa por não poder visitar a mãe no hospital, em que se deparará com diversas surpresas, a maior das quais não será uma baleia azul - literalmente - com papel fundamental no desfecho de um relato rico e bem urdido, que Pachaud dotou de um humor sarcástico e provocador.
Mas, deixemos o conteúdo para passar à forma, pois esta é extremamente original. Em lugar de desenhar personagens num qualquer estilo gráfico, Panchaud optou por as representar como círculos vistos de cima, de diferentes tamanhos e cores, em fundos que parecem retirados de plantas ou mapas (vejam os exemplos aqui reproduzidos e procurem na ligação no final do texto outras páginas para perceberem realmente o que tento explicar). Reduzindo ao mínimo pormenores e extras, o que não significa que eles não existam e não complementem devidamente o relato, o autor criou uma obra única que, se a princípio se revela estranha para o leitor, rapidamente o agarra e o leva a um ritmo controlado para que possa apreender todos os seus detalhes.
Mas, se esta opção narrativa é curiosa, sem dúvida original e de certa forma desafiadora, a verdade é que, por um lado, faltam-lhe expressões que permitam aliar ao texto e às situações as emoções das personagens, e por outro, dada a quase abstração do traço, pode-se cair na tentação de ler apenas os textos sem o necessário complemento da interpretação do desenho, numa obra que é incontornavelmente de BD, género que se define pela conjugação indivisível de desenho e texto.
Questões contornáveis numa obra que justifica e merece leitura - e leitura atenta, pois a sua forma torna-a um desafio maior.
A
cor das coisas
Martin
Panchaud
Levoir
Portugal,
Outubro de 2025
170
x 240 mm, 232
p., cor,
capa dura
29,90€
(versão revista e aumentada do texto publicado na página online do Jornal de Notícias de 28 de Novembro de 2025 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Levoir ; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem comentários:
Enviar um comentário