

Não
deixem ninguém com vida
A 28 de Outubro de 1628, o Jakarta deixa Amsterdão. A bordo, entre tripulantes e os passageiros que buscavam novas vidas no Novo Mundo, seguiam 322 almas (para quem acredita nelas) não penadas (ainda...) mas que iriam penar duríssimas penas, mais do que é humanamente possível imaginar.
Mas, o mais relevante eram os 300 mil florins em ouro e jóias que a toda-poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) nele embarcara para estabelecer negócios em Java. E, involuntariamente, acicatar a avidez de uns quantos.
Este é o ponto de partida de 1629 ...ou a história apavorante de um naufrágio, cujo segundo volume acaba de ser disponibilizado pela Arte de Autor numa edição aprimorada, com o dedo conhecedor e inspirado de Mário Freitas, concluindo um relato terrífico livremente inspirado em factos reais.
Se o objectivo já parecia condenado à partida, pelas profundas desigualdades entre oficiais e tripulantes e entre estes e os passageiros, pelas crenças, vontades e aspirações díspares dos dois representantes da VOC, pelo tumultuoso feitio do capitão e pelo clima de suspeição, revolta e mesmo ódio latente que o contexto provocava, um naufrágio causado, mesmo que involuntariamente, quer pelo explodir do conflito latente, quer pelo desejo de riqueza de parte de alguns dos seres a bordo, acabará por reduzir todos praticamente ao mesmo nível social. Ou, para melhor descrever o sucedido, por arrastar todas aquelas almas para os degraus mais baixos e esconsos da natureza humana, perdidas num conjunto de ilhotas inóspitas e quase sem condições de vida.
Dessa forma, 1629 assume-se como uma descrição aterradoramente realista quer das inimagináveis faltas de condições de vida a bordo do navio, onde o capitão usurpa o lugar de um Deus sem amor, só impiedoso e castigador, quer do quotidiano na ilha, onde, mais uma vez, os desejos de poder e de riqueza, tristemente a par com um desejo de liberdade que perpassa por muitos, vai levar uma parte dos sobreviventes a perpetrar um abominável massacre.
Numa narrativa em que a violência, o sangue e o desprezo pela vida andam de mãos dadas com a submissão das multidões e a facilidade do olhar para o lado, Xavier Dorison e Thimothée Montaigne mesmo assim, chocam e violentam um leitor horrorizado por aquilo que os seus olhos testemunham e, mais, pelo que apenas é sugerido à sua imaginação doentia, mas incapaz de desviar o olhar, arrastado por uma escrita insidiosa, visceral e desafiadora e por um traço realista que exibe a animalidade humana de forma crua e despudorada.
1629
- vols. 1 e 2
Xavier
Dorison
(argumento)
Thimothée
Montaigne
Arte
de Autor
Portugal,
Abrl de 2025
235
x 310 mm, 136/144 p., cor, capa dura
34,95
€/35,95€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online de 4 de Julho de 2025 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Devir; clicar nesta ligação ou nesta para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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