16/01/2011

José Ruy: O Mosquito era uma janela aberta para um mundo que desconhecíamos!

Chama-se José Ruy Matias Pinto e nasceu a 9 de Maio de 1930, na Amadora. Ainda em actividade, é o autor português com mais álbuns publicados, tendo iniciado o seu percurso aos quadradinhos no Papagaio, com apenas 14 anos. Depois, passou por quase todas as publicações nacionais, entre as quais o Mosquito, de que é um dos últimos desenhadores vivos, cujas memórias agora evoca.

- Antes de ser autor, suponho que foi leitor do Mosquito. Essa experiência contribuiu para fazer de si um autor de BD?
José Ruy -
Foi fundamental, sem que na altura me tivesse apercebido disso. Tinha cinco anos quando tomei contacto com esse tipo de narrativa e fiquei fascinado. Nasceram aí as minhas primeiras garatujas.

- Como explica o fascínio que O Mosquito exercia sobre os seus leitores?
JR -
Todas as histórias tinham um particular interesse, não só pelos seus enredos como pela diversidade de temas. Naquela época era a janela que tínhamos aberta para o mundo que os miúdos como eu desconheciam.

- Quais as séries e autores do Mosquito que mais o marcaram?
JR -
Reportando-me aos primeiros números, «Pelo Mundo Fora», «Mik Mok Muk», «A Flecha de Ouro» e mais tarde, «Os Guerreiros do Lago Verde», «O Caminho do Oriente», «A Lei da Selva» e «Lobo Cinzento».
Autores, naturalmente Eduardo Teixeira Coelho, Emílio Freixas e Jesus Blasco no desenho, e na escrita Raul Correia e indiscutivelmente José Padiña que nunca viria a assinar com o seu verdadeiro nome.

- Tanto quanto sei, tinha apenas 14 anos quando começou a fazer histórias aos quadradinhos para o Papagaio.
JR -
Isso aconteceu em fins de 1944. Meu pai levou-me à redacção de O Papagaio, gostaram da minha bonecada e fiquei colaborador. No entanto desde muito cedo fui colhendo conselhos do Tiotónio, de quem meus pais tinham sido vizinhos, quando nasci. A certa altura apresentou-me a E. T. Coelho e a partir daí foram ele e o Mestre João Rodrigues Alves os meus grandes orientadores.

- Como chegou a colaborador do Mosquito?
JR -
Por acaso. Estava a terminar o curso de Artes Gráficas na Escola António Arroio, quando o Tiotónio pediu ao Mestre Rodrigues Alves que lhe indicasse um seu aluno mais adiantado para litografar as cores de O Mosquito, pois o Manuel Velez ia partir para a África. Fui eu o escolhido, independentemente da ligação que tinha já com o Tiotónio. Foi uma coincidência.

- No Mosquito, enquanto autor, teve colaboração limitada. Porquê?
JR
- Ao princípio a fasquia de qualidade estava elevada para mim. Depois quando melhorei o meu nível, a situação do jornal já não permitia compensar uma colaboração nacional, pois saía mais cara do que a estrangeira. Quando finalmente publiquei aí a minha primeira história, foi também por um mero acaso. Tinha sido lançado o Cavaleiro Andante que emitira um apelo para novos colaboradores. Levei uma história, com o aval de E. T. Coelho, mas passadas algumas semanas, nada me diziam. Fui saber da resposta e encontrei os originais colocados no mesmo sítio, num sofá, onde a secretária da redacção os tinha posto. Vendo o desinteresse em pelo menos olharem para os bonecos, trouxe-os de volta e o Coelho alvitrou publicá-la no Mosquito. A colaboração continuava a não ser bem paga, mas decidi-me. Chamou-se «O Reino Proibido» e acabei por fazer também capas, alusivas a outras histórias de origem estrangeira.

- Mas desenvolveu outras actividades na revista. Quais?
JR -
Tive a meu cargo a litografia das cores do jornal, fazia legendas e ilustrações para outras publicações realizadas nas Edições O Mosquito, como almanaques, cartazes e embalagens para produtos. Cheguei a ajudar o Tiotónio na máquina de impressão, quando era preciso trabalhar ao Domingo e já não dava para pagar a um turno extra aos impressores. Nos intervalos das cores dava uma ajuda na dobragem dos jornais.

- Como funcionava O Mosquito?
JR -
Era uma vertigem. A saída bi-semanal do jornal obrigava a um ritmo acelerado e eficaz de todos os operadores envolvidos. Era um trabalho «sem rede». Não dava para voltar atrás ou emendar algo. Havia periodicamente reuniões de «conselho» de redacção para criar novas rubricas, escolher as histórias seguintes ou ponderar sobre alguma sugestão. A máquina impressora trabalhava com dois turnos, das oito da manhã à meia-noite. Quando a urgência obrigava, eu ficava muito depois dessa hora a acabar a chapa de cor que na manhã seguinte precisava de estar pronta para entrar em funcionamento.

- Que memórias guarda dessa época?
JR -
Não só pela idade, pelo que estava a aprender e absorvi, pelas emoções criadas e vividas em tão prestigiado e mítico local, posso dizer que tenho as melhores recordações.

- De que maneira a sua experiência no Mosquito marcou o seu trajecto de autor?
JR -
Como uma «espinha dorsal» na minha carreira, tanto técnica como artística. Um verdadeiro alicerce implantado em rocha.

- Quer partilhar algum episódio curioso dessa época?
JR -
Lembro-me de um que tem tanto de humor como de inusitado.
Como sabe, sempre gostei de desenhar do natural, em certa altura precisei de fazer para a revista Flama uma história em quadrinhos à volta de uma ratazana. E estes bichos não faltavam no Bairro Alto e n’O Mosquito. Arranjei uma ratoeira de caixa de arame, para captar um exemplar vivo, para poder estudar em pormenor. Numa manhã lá estava o meu modelo. Desenhei afincadamente em todas as atitudes e quando terminei levantou-se a questão: que destino dar à bicha. Não tive coragem de a matar, depois de alguns dias de convívio. Resolvemos pintar-lhe a cauda com tinta de impressão encarnada, para ver se a voltávamos a ver, e soltámo-la na rua. Nunca mais tive notícias.

- Anos mais tarde tentou fazer renascer o Mosquito. Porquê?
JR -
Depois de algumas tentativas, que não seria bem com esse título, surgiu a oportunidade, com o Ezequiel Carradinha de editarmos este jornal dos meus sonhos. Passados alguns números, 14, como o meu parceiro não se encontrava em condições de continuar, mas o jornal não dava prejuízo, já com bastantes assinaturas, fiquei sozinho, responsável pela continuidade.

- Porque foi tão curta essa experiência?
JR -
Estávamos em 1960 e o frequente embarque de contingentes de jovens para a guerra nas colónias, destabilizou os potenciais leitores do jornal. Tenho essa indicação pelos pedidos para transferir o envio do jornal para Angola e outros pontos de África. Começou a dar um pequeno prejuízo, que multiplicado pelo número de semanas entre a produção e a prestação de contas da distribuidora transformou-se numa «bola de neve».

- Acha possível criar um “novo” Mosquito nos nossos dias? Porquê?
JR -
Acho indispensável. Não o velho Mosquito, litografado e com o lote de histórias dessa época, mas uma revista que mesmo modesta de aspecto (e de despesa) desse oportunidade a iniciados ombrearem com profissionais e assim poderem ser lançados e conhecidos pelo público. Este também precisa de uma «sacudidela» para voltar a interessar-se pelas Histórias em Quadrinhos, principalmente nacionais.

- Tem a colecção de O Mosquito?
JR -
Tenho realmente a colecção de O Mosquito, até à altura em que fui trabalhar para a redacção. É assim, casa de ferreiro, espeto de pau.
Também conservo uma da minha edição e do Carradinha.



- Tem algum projecto de banda desenhada em curso? Qual? Quando e onde será publicado?
JR -
Estou a fazer a vida de Leonardo Coimbra, o grande filósofo do princípio do século XX e da República Portuguesa, onde o documento histórico se funde com a ficção, de resto como em todos os trabalhos deste género que tenho realizado. Vai sair em livro pela Âncora Editora, em meados deste ano. A seguir prosseguirei na execução da minha agenda que está preenchida até 2012.

(Versão integral da entrevista que serviu de base ao texto publicado no Jornal de Notícias de 14 de Janeiro de 2011)

4 comentários:

  1. Excelente entrevista. A colecção do Mosquito é das coisas mais preciosas que possuo, devido ao seu valor sentimental. Recordo-me perfeitamente e com muita emoção do Reino Proibido e de Pelo Mundo Fora. Muito obrigado!

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  2. Caro Anónimo,
    Obrigado pela visita e pelas suas palavras. Foi um prazer evocar-lhe boas recordações. E suponho que leu também neste blog a entrevista com José Gracês e a evocação dos 75 anos de O Mosquito.
    Abraço!

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  3. Olá Pedro
    Referenciei no meu Blogue com link para aqui:
    http://peroladecultura.blogspot.com/2011/01/jose-ruy-e-historia-do-mosquito.html

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  4. Olá Lelé,
    Obrigado pela visita e pela divulgação!

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