23/04/2020

Roughneck

Contador de histórias




Já o afirmei aqui - penso eu…? - que Jeff Lemire é uma das minhas referências actuais e isso deve-se essencialmente aos seus argumentos para Black Hammer e Gideon Falls.
Lê-lo, agora como autor completo - o que não é para mim uma primeira vez - revela o que de melhor sabe fazer - contar histórias - mas comprova também um autor graficamente limitado.
Limitado - explicito já para que os leitores no final possam abandonar este texto com uma referência positiva, pois trata-se de uma bela leitura - no tratamento dos rostos, nalguma rigidez do traço - indubitavelmente ‘feio’, ‘agreste’, ‘duro’ - no vazio de fundos e cenários…
Mas, apesar disto, bem mais do que funcional quando o encarámos do ponto de vista da narrativa sequencial, pois toda a planificação, a ‘montagem’ das diferentes cenas, a utilização da ‘câmara’ que as expõe diante dos nossos olhos, a sua auto-suficiência em relação à exiguidade de texto escrito utilizado, uma série de pormenores que só a leitura revela, servem - e tão bem! - para guiar o leitor, destacar o que Lemire deseja, marcar o ritmo, quase sempre pausado do relato, levar-nos, sem quase darmos por isso, ao longo de quase três centenas de pranchas.
Três centenas de pranchas através das quais nos conta uma história aparentemente simples e linear: o reencontro entre Derek, um ex-jogador de hóquei no gelo, expulso da modalidade e com problemas de controlo de raiva, com a sua irmã Beth, drogada e em fuga de um ex-namorado violento e abusador, e a sua convivência numa cabana abandonada no meio do nada, numa tentativa de fuga dos respectivos problemas.
A história decorre numa pequena localidade isolada, algures no Canadá gelado, e a galeria de participantes é extremamente reduzida. Mas suficiente para criar uma história forte, humana, sobre pôr fim a um ciclo (hereditário) de violência familiar, ao longo da qual lampejos do passado - coloridos, em contraste com a maioria das páginas a preto e branco e com aguadas de cinzento - nos vão contar o que sucedeu a Derek e Beth e os levou a mergulharem numa espiral de auto-destruição.
O fortalecimento de relações que as dificuldades tantas vezes causam, o retrato cru e despido de preconceitos que Lemire apresenta, a busca nas raízes da força necessária para vencer o presente, são outros pontos fundamentais de uma história que apresenta como remate - não posfácio! - uma atitude surpreendente e inesperada capaz de aquecer os corações que o gelo e a neve canadianos possam ter arrefecido ao longo da leitura.

Roughneck
Jeff Lemire
G. Floy
Portugal, Abril de 2020
190 x 280 mm, 272 p., pb+cinza/cor, capa dura
30,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora G. Floy; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

1 comentário:

  1. Grande leitura... comprei a versão original muito antes de saber do lançamento da versão portuguesa. Tirando raras exepções, Jeff Lemire não desilude. Essex County é talvez a sua maior obra. Quanto à arte, não é efetivamente para todos... eu gosto bastante!

    ResponderEliminar