26/05/2020

Paulo J. Mendes: "O objectivo era criar um divertimento meio delirante, um pouco como um sonho louco"








Anuncia-se como uma 'desnovela gráfica', tem por título O Penteador, é uma das boas e bem-dispostas surpresas do ano e marca o regresso (em bom tempo!) à BD, do seu autor, Paulo J. Mendes.
A conversa que se segue, feita por correio electrónico, serve para saber como e porquê e para conhecer melhor o criador e a criatura.

As Leituras do Pedro - Publicaste BD no fanzine Comicarte, montamos juntos alguns Salões de BD do Porto, depois trabalhaste em publicidade, ilustraste comboios, mais recentemente surgiu o sketch urbano e agora voltas à BD. Quais as razões deste percurso?
Paulo J. Mendes - Na adolescência e início da idade adulta, época à qual remontam esses belos tempos do Comicarte e dos Salões - anos oitenta e início dos noventa - eu adorava BD, sonhava vir a ser autor a tempo inteiro, mas em boa verdade nunca me esforcei demasiado para isso. Tinha pouco foco, não me rodeei das ferramentas certas e andava demasiado ocupado a sair, a divertir-me, copofonia... Na mesma altura entrei no mercado de trabalho e arranjei logo um emprego fácil e muito bem pago, que fez com que me acomodasse, e durante toda a década de noventa, para mim bem nefasta, acabei por não fazer nada de especialmente criativo. Nessa altura o meu interesse pela ferrovia levou-me a participar com algum entusiasmo nas actividades de uma associação de entusiastas que publicava regularmente um boletim (hoje em dia revista de pleno direito) tendo eu feito dezenas de ilustrações para as capas.
O sketch urbano surgiu em 2014, já noutra fase da vida e numa altura também complicada em que trabalhava longe de casa e dei por mim aprisionado numa rotina de grande isolamento que durou vários anos e me pôs no limiar da insanidade. Mais uma vez andava sem fazer nada de criativo, e quase por acidente comecei a praticar o sketching. Adorei e fiquei viciado, passando a publicar no meu blog [Postalguarelas] e a ter feedback. Foi o início duma libertação: Aos poucos fui conhecendo outros sketchers, a participar em encontros, a viajar um pouco e reencontrar-me com o mundo. De algumas conversas decorrentes desse convívio, falava-se por vezes de BD, houve um amigo que me começou a emprestar umas coisas para ler e a velha chama de repente reacendeu-se.

As Leituras do Pedro - Durante estes anos abandonaste completamente a BD ou foste produzindo alguma coisa para a gaveta?
Paulo J. Mendes - Abandonei completamente, até mesmo como leitor. Devo ter comprado três ou quatro álbuns durante o todo o tempo em que estive parado. Aos poucos deixei de acompanhar tudo o que ia acontecendo. No entanto ficou sempre, bem cá no fundo, uma vontade de contar histórias na qual nunca soube ou consegui pegar, a tal “chama-piloto” a que aludi no prefácio de O Penteador.

As Leituras do Pedro - E porquê este regresso à BD?
Paulo J. Mendes - O Armando, grande sketcher e amigo meu, apreciador e leitor de BD, começou a emprestar-me umas novelas gráficas e de repente dou por mim a reler, a gostar tanto como antigamente, e a perguntar-me como foi possível estar tanto tempo sem fazer nada. Não demorou muito até estar cheio de ideias e de vontade. O sketching é uma grande ferramenta para treinar a concentração, a agilidade de pensamento, a capacidade de resolver problemas na hora e tomar decisões, pelo que desta vez estava bem preparado e já não foi nada difícil passar da teoria à prática.

As Leituras do Pedro - Que livros te motivaram para regressares?
Paulo J. Mendes - O formato de novela gráfica, por mim até aí desconhecido, atraiu-me por ter mais “substância” do que os álbuns, que se lêem demasiado depressa. Os Ignorantes, do Davodeau merece especial menção: quase trezentas páginas à volta de temáticas aparentemente pouco interessantes, e no entanto não só li num ápice, como no fim parecia que tinha estado no meio daquele grupo de pessoas e as conversas ainda ecoavam na minha cabeça. Uma fluidez espantosa e um desenho simples e eficaz. Poderia citar outros, mas este ficou para mim como uma referência, porque assim que o li, achei que era a forma como eu próprio gostaria de trabalhar.

As Leituras do Pedro - O que é uma ‘desnovela gráfica’?
Paulo J. Mendes - Uma descabelada variante da novela gráfica para não levar demasiado a sério, normalmente executada por um principiante que deseja acima de tudo divertir-se enquanto retoma o prazer de fazer BD... Calculo que seja assim que deverá aparecer futuramente na deswikipédia.

As Leituras do Pedro - Como nasceu O Penteador?
Paulo J. Mendes - Curiosamente, antes de O Penteador nasceu o território onde tudo se passa. Desde sempre que tenho o hábito de criar lugares imaginários que percorro mentalmente, uma espécie de refúgio ocasional à realidade, e este existia na minha cabeça há uns bons anos. Depois havia uma série de ideias e gags dispersos, que me ocorriam de repente e ia guardando para um dia usar no que quer que fosse. Acho que o momento de regressar à BD foi a oportunidade ideal de juntar tudo e dar uma utilidade a todos esses devaneios. A forma como se encaixaram foi a prova de que as coisas só estavam à espera do momento certo para acontecerem.

As Leituras do Pedro - Que história querias contar com este livro?
Paulo J. Mendes - Estando munido dos elementos que referi acima, quis em primeiro lugar juntar tudo de uma forma mais ou menos coerente, mesmo não sendo obrigatório que fizesse sentido: Gosto de humor surrealista e delirante, quanto mais disparatado melhor, e quis criar uma história onde isso estivesse presente. Quando era novo tive a sorte de ter um grupo de amigos fantásticos com quem vivi episódios absolutamente mirabolantes e quis transmitir também um pouco desse espírito de convívio, liberdade e hedonismo. No seu todo, o objectivo era criar um divertimento meio delirante, um pouco como um sonho louco, partilhando também algum do meu imaginário visual.

As Leituras do Pedro - Mafaldo Limparrim, Manganésfero, Nascilindo, Gasolinda… de onde vieram estes nomes?
Paulo J. Mendes - Pode parecer incrível, mas alguns existem mesmo. Quando trabalhava em listas telefónicas houve uma altura em que me divertia a apontar os nomes mais estranhos que lá encontrava, e desses há pelo menos três ou quatro que estão na história. Os restantes foram criados em conformidade com o desmiolado contexto geral.

As Leituras do Pedro - No livro, o eléctrico, a representação dos cenários urbanos, certos elementos destes que parecem ter sido ‘transportados’ de locais reais, parecem ecos do teu percurso. O que ganhou o Paulo autor de BD com a passagem pela publicidade e o desenho de comboios e paisagens?
Paulo J. Mendes - Somos a soma das coisas boas e más por que passamos, e podemos tirar lições de todas as fases da vida, mesmo as mais improdutivas e estagnadas. Ao longo dessas passagens de que falas houve alturas em que só criava paisagens imaginárias, outras em que trabalhava a partir de fotografias, e outras em que só desenhava por observação directa. Das primeiras trouxe um mundo interior muito próprio, das segundas o estudo detalhado do objecto, e das terceiras o apurar da mão e da capacidade de observar o que me rodeia. Acho que ganhei bastante com todos os sítios e experiências por que passei, mesmo quando achava que não estava a ganhar nada. 

As Leituras do Pedro - A cor chegou a ser opção para este livro ou a tua ideia foram sempre os tons cinza que utilizaste?
Paulo J. Mendes - Não cheguei a considerar a cor. Tinha a noção de que era um primeiro trabalho, a hipótese de o ver publicado era remota, mas a acontecer teria necessariamente que ter custos reduzidos. Por outro lado, apetecia-me trabalhar de forma rápida e fluida - não gosto de andar muito tempo a mastigar à volta das mesmas coisas - e a cor iria tornar isso mais difícil.

As Leituras do Pedro - Como olhas para o livro agora, dois, três meses depois de editado, mais alguns após o teres terminado?
Paulo J. Mendes - O primeiro livro será sempre indescritível e especial, mesmo sabendo que hoje já teria feito muitas coisas de outra maneira. Às vezes ainda me custa a crer que esse velho sonho se materializou. Enquanto objecto, é um belíssimo livro, muito bem impresso, agradável à vista e ao tacto. A Escorpião Azul fez um trabalho excelente.
Neste momento, a minha cabeça já está completamente mergulhada na próxima história e até certo ponto este livro já é, passe a expressão, uma página que se virou. Mas sempre que o revisito é inevitável sentir esse deslumbramento de “primeiro filho”. A única coisa que lamento é ter chegado no mesmo autocarro que um certo covid...

As Leituras do Pedro - Quando o começaste já tinhas editor? Como chegaste à Escorpião Azul?
Paulo J. Mendes - Não tinha editor, nem fazia ideia se iria criar uma coisa minimamente editável. O que queria mesmo era voltar a sentir o prazer de criar uma BD. Depois vi que estava a correr bem, entusiasmei-me e uma vez finda a empreitada, no início de 2019, dei-a a ler a meia dúzia de vítimas escolhidas entre os meus amigos mais queridos. A receptividade foi bastante boa, mas em todo o caso não sabia como fazer chegar uma coisa destas a uma editora. Essa oportunidade surgiu em Setembro desse ano, na Feira do Livro do Porto, quando encontrei o stand da Convergência, falei com o Pedro Cipriano e ele me deu a conhecer a Escorpião Azul. Gostei da editora e do conceito, achei que o meu “produto” encaixava ali, fiz o contacto e enviei umas pranchas digitalizadas, e a resposta foi imediata. Passados nem seis meses, o livro sai... Nunca pensei que as coisas pudessem correr tão bem!

As Leituras do Pedro - Até agora, a crítica existente - leia-se uns poucos blogs que escreveram sobre O Penteador - acolheram bem o teu livro. Estavas à espera?
Paulo J. Mendes - Estava muito inseguro. À medida que fui retomando contacto com a BD, nomeadamente através da net e blogosfera, apercebi-me de que o público leitor em Portugal é muito conhecedor e exigente, bem mais do que há trinta anos atrás, e eu apareço de “pára-quedas” com um primeiro trabalho, incipiente e um tanto fora do convencional. Imaginava que ia ser triturado, mastigado e cuspido, e em boa verdade ainda não me livrei totalmente disso poder acontecer. Claro que estou muito contente, aliviado e surpreendido com a boa receptividade que tem tido, o que me incentiva muito a prosseguir mesmo sabendo que terei que trabalhar muito mais, aprender com alguns erros e melhorar muito do que por agora vai sendo perdoável a quem está a (re)começar...

As Leituras do Pedro - E agora, concluída esta experiência, vamos ter de esperar mais 30 anos por outra BD do Paulo J. Mendes?
Paulo J. Mendes - Estou já a trabalhar numa nova história, que tem sido a minha tábua de salvação nestes dias pandémicos, ainda com muito trabalho pela frente, mas bem menos tempo do que isso, espero eu! Aquilo que desejo é que daqui a 30 anos a BD no seu todo continue a apaixonar e entusiasmar os descendentes dos velhinhos que então seremos, e que tu e eu passemos mais tempo em salões de BD do que em lares e centros de dia.

(capa disponibilizada pela editora Escorpião Azul; foto e restantes imagens disponibilizadas pelo autor; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

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