Anuncia-se como uma 'desnovela
gráfica', tem por título O Penteador, é uma das boas e bem-dispostas surpresas do ano e marca o regresso (em bom tempo!) à BD, do seu autor, Paulo
J. Mendes.
A conversa que se segue, feita
por correio electrónico, serve para saber como e porquê e para
conhecer melhor o criador e a criatura.
As
Leituras do Pedro - Publicaste BD no fanzine Comicarte,
montamos juntos alguns Salões de BD do Porto, depois trabalhaste em
publicidade, ilustraste
comboios, mais recentemente surgiu o sketch urbano e agora voltas à
BD. Quais
as razões
deste percurso?
Paulo
J. Mendes - Na
adolescência e início da idade adulta, época à qual remontam
esses belos tempos do Comicarte e dos Salões - anos oitenta e início
dos noventa - eu adorava BD, sonhava vir a ser autor a tempo inteiro,
mas em boa verdade nunca me esforcei demasiado para isso. Tinha pouco
foco, não me rodeei das ferramentas certas e andava demasiado
ocupado a sair, a divertir-me, copofonia... Na mesma altura entrei no
mercado de trabalho e arranjei logo um emprego fácil e muito bem
pago, que fez com que me acomodasse, e durante toda a década de
noventa, para mim bem nefasta, acabei por não fazer nada de
especialmente criativo. Nessa altura o meu interesse pela ferrovia
levou-me a participar com algum entusiasmo nas actividades de uma
associação de entusiastas que publicava regularmente um boletim
(hoje em dia revista de pleno direito) tendo eu feito dezenas de
ilustrações para as capas.
O sketch urbano surgiu em
2014, já noutra fase da vida e numa altura também complicada em que
trabalhava longe de casa e dei por mim aprisionado numa rotina de
grande isolamento que durou vários anos e me pôs no limiar da
insanidade. Mais uma vez andava sem fazer nada de criativo, e quase
por acidente comecei a praticar o sketching. Adorei e fiquei viciado,
passando a publicar no meu blog [Postalguarelas] e a ter feedback. Foi o início duma
libertação: Aos poucos fui conhecendo outros sketchers, a
participar em encontros, a viajar um pouco e reencontrar-me com o
mundo. De algumas conversas decorrentes desse convívio, falava-se
por vezes de BD, houve um amigo que me começou a emprestar umas
coisas para ler e a velha chama de repente reacendeu-se.
As
Leituras do Pedro - Durante estes anos abandonaste completamente a BD
ou foste produzindo alguma coisa para a gaveta?
Paulo
J. Mendes - Abandonei
completamente, até mesmo como leitor. Devo ter comprado três ou
quatro álbuns durante o todo o tempo em que estive parado. Aos
poucos deixei de acompanhar tudo o que ia acontecendo. No entanto
ficou sempre, bem cá no fundo, uma vontade de contar histórias na
qual nunca soube ou consegui pegar, a tal “chama-piloto” a que
aludi no prefácio de O
Penteador.
As
Leituras do Pedro - E porquê este regresso à BD?
Paulo
J. Mendes - O
Armando, grande sketcher e amigo meu, apreciador e leitor de BD,
começou a emprestar-me umas novelas gráficas e de repente dou por
mim a reler, a gostar tanto como antigamente, e a perguntar-me como
foi possível estar tanto tempo sem fazer nada. Não demorou muito
até estar cheio de ideias e de vontade. O sketching é uma grande
ferramenta para treinar a concentração, a agilidade de pensamento,
a capacidade de resolver problemas na hora e tomar decisões, pelo
que desta vez estava bem preparado e já não foi nada difícil
passar da teoria à prática.
As
Leituras do Pedro - Que
livros te motivaram para regressares?
Paulo
J. Mendes - O
formato de novela gráfica, por mim até aí desconhecido, atraiu-me
por ter mais “substância” do que os álbuns, que se lêem
demasiado depressa. Os
Ignorantes,
do Davodeau merece especial menção: quase trezentas páginas à
volta de temáticas aparentemente pouco interessantes, e no entanto
não só li num ápice, como no fim parecia que tinha estado no meio
daquele grupo de pessoas e as conversas ainda ecoavam na minha
cabeça. Uma fluidez espantosa e um desenho simples e eficaz. Poderia
citar outros, mas este ficou para mim como uma referência, porque
assim que o li, achei que era a forma como eu próprio gostaria de
trabalhar.
As Leituras do Pedro - O que é uma ‘desnovela gráfica’?
Paulo
J. Mendes - Uma
descabelada variante da novela gráfica para não levar demasiado a
sério, normalmente executada por um principiante que deseja acima de
tudo divertir-se enquanto retoma o prazer de fazer BD... Calculo que
seja assim que deverá aparecer futuramente na deswikipédia.
Paulo
J. Mendes - Curiosamente,
antes de O
Penteador
nasceu o território onde tudo se passa. Desde sempre que tenho o
hábito de criar lugares imaginários que percorro mentalmente, uma
espécie de refúgio ocasional à realidade, e este existia na minha
cabeça há uns bons anos. Depois havia uma série de ideias e gags
dispersos, que me ocorriam de repente e ia guardando para um dia usar
no que quer que fosse. Acho que o momento de regressar à BD foi a
oportunidade ideal de juntar tudo e dar uma utilidade a todos esses
devaneios. A forma como se encaixaram foi a prova de que as coisas só
estavam à espera do momento certo para acontecerem.
As
Leituras do Pedro - Que história querias contar com este livro?
Paulo
J. Mendes - Estando
munido dos elementos que referi acima, quis em primeiro lugar juntar
tudo de uma forma mais ou menos coerente, mesmo não sendo
obrigatório que fizesse sentido: Gosto de humor surrealista e
delirante, quanto mais disparatado melhor, e quis criar uma história
onde isso estivesse presente. Quando era novo tive a sorte de ter um
grupo de amigos fantásticos com quem vivi episódios absolutamente
mirabolantes e quis transmitir também um pouco desse espírito de
convívio, liberdade e hedonismo. No seu todo, o objectivo era criar
um divertimento meio delirante, um pouco como um sonho louco,
partilhando também algum do meu imaginário visual.
As
Leituras do Pedro - Mafaldo Limparrim, Manganésfero, Nascilindo,
Gasolinda… de onde vieram estes nomes?
Paulo
J. Mendes - Pode
parecer incrível, mas alguns existem mesmo. Quando trabalhava em
listas telefónicas houve uma altura em que me divertia a apontar os
nomes mais estranhos que lá encontrava, e desses há pelo menos três
ou quatro que estão na história. Os restantes foram criados em
conformidade com o desmiolado contexto geral.
As
Leituras do Pedro - No livro, o eléctrico, a representação dos
cenários urbanos, certos elementos destes que parecem ter sido
‘transportados’
de locais reais,
parecem ecos do teu percurso. O que ganhou o Paulo autor de BD com a
passagem pela publicidade e o desenho de comboios e paisagens?
Paulo
J. Mendes - Somos
a soma das coisas boas e más por que passamos, e podemos tirar
lições de todas as fases da vida, mesmo as mais improdutivas e
estagnadas. Ao longo dessas passagens de que falas houve alturas em
que só criava paisagens imaginárias, outras em que trabalhava a
partir de fotografias, e outras em que só desenhava por observação
directa. Das primeiras trouxe um mundo interior muito próprio, das
segundas o estudo detalhado do objecto, e das terceiras o apurar da
mão e da capacidade de observar o que me rodeia. Acho que ganhei
bastante com todos os sítios e experiências por que passei, mesmo
quando achava que não estava a ganhar nada.
As
Leituras do Pedro - A cor chegou
a ser
opção para este livro ou a tua ideia foram sempre os tons cinza que
utilizaste?
Paulo
J. Mendes - Não
cheguei a considerar a cor. Tinha a noção de que era um primeiro
trabalho, a hipótese de o ver publicado era remota, mas a acontecer
teria necessariamente que ter custos reduzidos. Por outro lado,
apetecia-me trabalhar de forma rápida e fluida - não gosto de andar
muito tempo a mastigar à volta das mesmas coisas - e a cor iria
tornar isso mais difícil.
As
Leituras do Pedro - Como olhas para o livro agora, dois, três meses
depois de editado, mais alguns após o teres terminado?
Paulo
J. Mendes - O
primeiro livro será sempre indescritível e especial, mesmo sabendo
que hoje já teria feito muitas coisas de outra maneira. Às vezes
ainda me custa a crer que esse velho sonho se materializou. Enquanto
objecto, é um belíssimo livro, muito bem impresso, agradável à
vista e ao tacto. A Escorpião Azul fez um trabalho excelente.
Neste momento, a minha cabeça
já está completamente mergulhada na próxima história e até certo
ponto este livro já é, passe a expressão, uma página que se
virou. Mas sempre que o revisito é inevitável sentir esse
deslumbramento de “primeiro filho”. A única coisa que lamento é
ter chegado no mesmo autocarro que um certo covid...
As
Leituras do Pedro - Quando o começaste já tinhas editor? Como
chegaste à Escorpião Azul?
Paulo
J. Mendes - Não
tinha editor, nem fazia ideia se iria criar uma coisa minimamente
editável. O que queria mesmo era voltar a sentir o prazer de criar
uma BD. Depois vi que estava a correr bem, entusiasmei-me e uma vez
finda a empreitada, no início de 2019, dei-a a ler a meia dúzia de
vítimas escolhidas entre os meus amigos mais queridos. A
receptividade foi bastante boa, mas em todo o caso não sabia como
fazer chegar uma coisa destas a uma editora. Essa oportunidade surgiu
em Setembro desse ano, na Feira do Livro do Porto, quando encontrei o
stand da Convergência, falei com o Pedro Cipriano e ele me deu a
conhecer a Escorpião Azul. Gostei da editora e do conceito, achei
que o meu “produto” encaixava ali, fiz o contacto e enviei umas
pranchas digitalizadas, e a resposta foi imediata. Passados nem seis
meses, o livro sai... Nunca pensei que as coisas pudessem correr tão
bem!
As
Leituras do Pedro - Até agora, a crítica existente - leia-se uns
poucos blogs que escreveram sobre O Penteador - acolheram bem o teu
livro. Estavas à espera?
Paulo
J. Mendes - Estava
muito inseguro. À medida que fui retomando contacto com a BD,
nomeadamente através da net e blogosfera, apercebi-me de que o
público leitor em Portugal é muito conhecedor e exigente, bem mais
do que há trinta anos atrás, e eu apareço de “pára-quedas”
com um primeiro trabalho, incipiente e um tanto fora do convencional.
Imaginava que ia ser triturado, mastigado e cuspido, e em boa verdade
ainda não me livrei totalmente disso poder acontecer. Claro que
estou muito contente, aliviado e surpreendido com a boa receptividade
que tem tido, o que me incentiva muito a prosseguir mesmo sabendo que
terei que trabalhar muito mais, aprender com alguns erros e melhorar
muito do que por agora vai sendo perdoável a quem está a
(re)começar...
As
Leituras do Pedro - E agora, concluída esta experiência, vamos ter
de esperar mais 30 anos por outra BD do Paulo J. Mendes?
Paulo
J. Mendes - Estou
já a trabalhar numa nova história, que tem sido a minha tábua de
salvação nestes dias pandémicos, ainda com muito trabalho pela
frente, mas bem menos tempo do que isso, espero eu! Aquilo que desejo
é que daqui a 30 anos a BD no seu todo continue a apaixonar e
entusiasmar os descendentes dos velhinhos que então seremos, e que
tu e eu passemos mais tempo em salões de BD do que em lares e
centros de dia.
(capa
disponibilizada pela editora Escorpião Azul; foto e restantes
imagens disponibilizadas pelo autor; clicar nas imagens para as
aproveitar em toda a sua extensão)
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