Há 40 anos, Isa surgia aos olhos dos leitores de BD como uma das grandes mulheres (de papel) da década. Pelo menos. Trinta anos depois, era ela quem fazia a passagem de testemunho para a sua bisneta, também Isa, através de quem descobrimos o destino da sua - e um pouco nossa - bisavó.
Agora, voltamos
a encontrá-la - à bisneta, claro - em
Paris, no final da segunda metade do século XIX.
Uma Paris então varrida pelos ventos da revolução em que Isa, a
sua protegida Klervi e uns poucos mais, surgem quase como peões num
tabuleiro gigante em que parece decorrer uma partida de xadrez jogada
por loucos.
Em relação ao díptico anterior - A Menina de Bois-Caïman -
relevam-se os mesmos aspectos menos conseguidos - ou a Bourgeon
exigimos sempre (de)mais? O tempo passou e o traço do autor denota
os seus efeitos: é menos espontâneo, menos solto - menos sedutor
também. Continua a ser um grande autor realista mas entre esta Isa e
aquela que dos deu volta à cabeça nos anos 80, vai uma grande
distância, mesmo não sendo a mesma.
Em termos narrativos, mantém-se o recurso a alguns diálogos noutra
língua - então o crioulo, agora (maioritariamente) o bretão - que,
se acrescentam veracidade ao relato, quebram a sua leitura pela
obrigatoriedade de procurar a sua tradução nas páginas finais. O
mesmo acontece com as explicações históricas a que o tempo dos
acontecimentos obriga. São 3 páginas finais com anotações
referentes a metade das pranchas do livro. Demasiadas? Parece-me que
sim. Necessárias? Evidentemente, pelas opções do autor. Um aspecto
não impede o outro...
Uma das características marcantes da série - e uma das razões da
sua força narrativa - é
a forma como as personagens viviam (n)uma determinada época e como
os factos históricos contemporâneos se reflectiam na sua vida, sem
serem o centro na narrativa. Se isto já se tinha esbatido um pouco
no díptico anterior, agora quase desapareceu e - pelo menos - este
primeiro de dois livros de O Sangue das Cerejas ostenta uma
carga histórica que na leitura me soou demasiado pesado. Também -
especialmente - porque coincide com um tempo, uma época, uma
situação particular da História francesa com que não estou - como
muitos dos leitores - especialmente familiarizado e esse conhecimento
prévio parece-me importante para uma completa fruição da obra.
Fará (?) muito sentido para leitores franceses, mas revela-se muito
menos intuitivo para os de outras paragens…
Mas não quero, com tudo o que até aqui escrevi, deixar a impressão
que estamos perante uma obra menor - mas não nego que é até agora
- para mim - o ciclo menos apaixonante da série criada por
Bourgeon.
Releio e sei que poderei vir a lamentar (boa) parte do que aqui
escrevi - e até o desejo veementemente - mas, até agora, em relação
a este O sangue das Cerejas sinto, sem dúvida, falta de
empatia.
Isso não nega, no entanto, que François Bourgeon continua a ser um
senhor na sua arte. O realismo é extremo, a veracidade histórica
inegável, as suas personagens fortes e personalizadas, os cenários
absolutamente credíveis. Narrativamente, Bourgeon utiliza bem a
planificação para pontuar a acção, fazê-la retardar ou avançar
mais depressa, para destacar um ou outro aspecto marcante, passando
naturalmente de pranchas de vinheta única para outras com uma dezena
delas e alternando grandes planos com planos de conjunto. E -
arrastados pelo que conhecemos dele - lemos (mais) este álbum
sedentos de descobertas e surpresas. Que - apesar de tudo... - ele
nos vai servindo.
Os Passageiros do Vento
O Sangue das Cerejas - livro 1
François Bourgeon
Ala dos Livros
Portugal, Julho de 2020
235
x 310
mm, 96
p., cor, capa dura
22,00
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros;
clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Tive uma sensação semelhante ao ler a obra. Notei um peso excessivo do conteúdo histórico envolvendo o fio narrativo, contrariamente ao que se passava nos volumes anteriores.
ResponderEliminarQuanto à parte artística, Bourgeon continua sublime!
Entendo a crítica quanto à falta de espontaneidade no desenho, e concordo que para quem não conhece o contexto histórico da comuna de Paris e do ambiente boémio de Montmatre muitas das referências históricas pareçam excessivas, ou mesmo forçadas.
ResponderEliminarNo entanto aponto a maturidade com que Bourgeon nos traz esta história: uma maturidade ganha com a experiência, do desenho e sobretudo do mundo. Quando Zabo partilha a violência de que foi vitima, o autor não recorre a flashbacks como nos ciclos anteriores, mas a close ups, dotando a personagem de uma expressividade emprestada ao cinema ou às artes performativas. É neste revisitar e aprofundamento dos temas dos ciclos anteriores que o Bourgeon ganha a vitalidade e relevância.
Da mesma forma, a escolha do tema da Comuna Parisiense em background não pode ser entendida como casual – mas uma escolha relevante para o momento e contexto politico de 2019.