04/08/2020

Os Passageiros do Vento - O Sangue das Cerejas - Livro 1

Falta de empatia




Há 40 anos, Isa surgia aos olhos dos leitores de BD como uma das grandes mulheres (de papel) da década. Pelo menos. Trinta anos depois, era ela quem fazia a passagem de testemunho para a sua bisneta, também Isa, através de quem descobrimos o destino da sua - e um pouco nossa - bisavó.
Agora, voltamos a encontrá-la - à bisneta, claro - em Paris, no final da segunda metade do século XIX.
Uma Paris então varrida pelos ventos da revolução em que Isa, a sua protegida Klervi e uns poucos mais, surgem quase como peões num tabuleiro gigante em que parece decorrer uma partida de xadrez jogada por loucos.
Em relação ao díptico anterior - A Menina de Bois-Caïman - relevam-se os mesmos aspectos menos conseguidos - ou a Bourgeon exigimos sempre (de)mais? O tempo passou e o traço do autor denota os seus efeitos: é menos espontâneo, menos solto - menos sedutor também. Continua a ser um grande autor realista mas entre esta Isa e aquela que dos deu volta à cabeça nos anos 80, vai uma grande distância, mesmo não sendo a mesma.
Em termos narrativos, mantém-se o recurso a alguns diálogos noutra língua - então o crioulo, agora (maioritariamente) o bretão - que, se acrescentam veracidade ao relato, quebram a sua leitura pela obrigatoriedade de procurar a sua tradução nas páginas finais. O mesmo acontece com as explicações históricas a que o tempo dos acontecimentos obriga. São 3 páginas finais com anotações referentes a metade das pranchas do livro. Demasiadas? Parece-me que sim. Necessárias? Evidentemente, pelas opções do autor. Um aspecto não impede o outro...
Uma das características marcantes da série - e uma das razões da sua força narrativa - é a forma como as personagens viviam (n)uma determinada época e como os factos históricos contemporâneos se reflectiam na sua vida, sem serem o centro na narrativa. Se isto já se tinha esbatido um pouco no díptico anterior, agora quase desapareceu e - pelo menos - este primeiro de dois livros de O Sangue das Cerejas ostenta uma carga histórica que na leitura me soou demasiado pesado. Também - especialmente - porque coincide com um tempo, uma época, uma situação particular da História francesa com que não estou - como muitos dos leitores - especialmente familiarizado e esse conhecimento prévio parece-me importante para uma completa fruição da obra. Fará (?) muito sentido para leitores franceses, mas revela-se muito menos intuitivo para os de outras paragens…
Mas não quero, com tudo o que até aqui escrevi, deixar a impressão que estamos perante uma obra menor - mas não nego que é até agora - para mim - o ciclo menos apaixonante da série criada por Bourgeon.
Releio e sei que poderei vir a lamentar (boa) parte do que aqui escrevi - e até o desejo veementemente - mas, até agora, em relação a este O sangue das Cerejas sinto, sem dúvida, falta de empatia.
Isso não nega, no entanto, que François Bourgeon continua a ser um senhor na sua arte. O realismo é extremo, a veracidade histórica inegável, as suas personagens fortes e personalizadas, os cenários absolutamente credíveis. Narrativamente, Bourgeon utiliza bem a planificação para pontuar a acção, fazê-la retardar ou avançar mais depressa, para destacar um ou outro aspecto marcante, passando naturalmente de pranchas de vinheta única para outras com uma dezena delas e alternando grandes planos com planos de conjunto. E - arrastados pelo que conhecemos dele - lemos (mais) este álbum sedentos de descobertas e surpresas. Que - apesar de tudo... - ele nos vai servindo.

Os Passageiros do Vento
O Sangue das Cerejas - livro 1
François Bourgeon
Ala dos Livros
Portugal, Julho de 2020
235 x 310 mm, 96 p., cor, capa dura
22,00

(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Tive uma sensação semelhante ao ler a obra. Notei um peso excessivo do conteúdo histórico envolvendo o fio narrativo, contrariamente ao que se passava nos volumes anteriores.
    Quanto à parte artística, Bourgeon continua sublime!

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  2. Entendo a crítica quanto à falta de espontaneidade no desenho, e concordo que para quem não conhece o contexto histórico da comuna de Paris e do ambiente boémio de Montmatre muitas das referências históricas pareçam excessivas, ou mesmo forçadas.
    No entanto aponto a maturidade com que Bourgeon nos traz esta história: uma maturidade ganha com a experiência, do desenho e sobretudo do mundo. Quando Zabo partilha a violência de que foi vitima, o autor não recorre a flashbacks como nos ciclos anteriores, mas a close ups, dotando a personagem de uma expressividade emprestada ao cinema ou às artes performativas. É neste revisitar e aprofundamento dos temas dos ciclos anteriores que o Bourgeon ganha a vitalidade e relevância.
    Da mesma forma, a escolha do tema da Comuna Parisiense em background não pode ser entendida como casual – mas uma escolha relevante para o momento e contexto politico de 2019.

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