06/04/2021

O último homem...

Até ao fim...





Num ano em que a edição em Portugal parece rendida ao western - Undertaker, Tex, Duke, Lucky Luke de... - O último homem... é mais um título para engrossar aquela bela lista, com uma história que se lê até à última página...

Incursão no (até agora pouco explorado em Portugal) catálogo da Bamboo, por parte da Gradiva - e primeira das boas surpresas que a editora preparou para os apreciadores de banda desenhada este ano - esta é uma história que surpreende o leitor uma e outra - e outra.. - vez, alterando o seu rumo a cada inflexão do caminho. Na verdade, o leitor é sucessivamente surpreendido - em toda a acepção da palavra - por cada variação que os autores introduzem, variações essas que não só modificam o tipo de relato, como vão revelando novas facetas dos seus protagonistas, acentuando de forma (cada vez mais) trágica como os azares da vida ou os jogos do destino, podem influenciar decisivamente as acções de cada um.

No início, temos um (ex-)pistoleiro (?), Russell, que acolhe uma criança, que acabou de ficar órfão sem o saber - sem o perceber. A sua afeição ao miúdo, com algum atraso mental, leva-o a tomá-lo sob a sua guarda e até a decidir mudar de rumo, assentando para lhe dar um novo lar.

As condicionantes da vida - bem como as mudanças profundas que a (chamada) civilização trouxe ao Oeste (dito) selvagem - vão operar metamorfoses profundas na trama quando o caminho de Russell e Bennett se cruza com um bando que o progresso transformou em ladrões, um emissário do caminho-de-ferro empenhado em enriquecer à sua custa de forma não muito honesta e uma cidade disposta a tudo - mesmo tudo... - para assegurar a sobrevivência no novo paradigma civilizacional.

As certezas (efémeras) que o leitor vai formando - e vendo diluir no ar... - são de certa forma forçadas também pelo contraste entre o tom trágico que vai sendo robustecido ao longo do relato e o belo desenho realista de Gastine, atraente, pormenorizado e límpido, bem menos sombrio do que a magnífica ilustração da capa do álbum. A planificação é clássica, aqui e ali quebrada pela eliminação dos limites de algumas vinhetas, e substancial, com pranchas bem preenchidas - por vezes com 5 tiras - aproveitando a dimensão generosa das páginas, e o conjunto é tingido com belas cores que acentuam os momentos de maior tensão, da autoria do próprio Gastine, em que se destacam especialmente as cenas nocturnas ou em que predominam a inclemência dos elementos.

O aprofundamento do carácter das personagens ao longo das páginas, a evidência das acções condicionadas pelas emoções, as tragédias e as opções alheias, acabam por transformar este western num drama inesperado, de contornos profundamente humanos, em que uma e outra vez, aquilo que parecia evidente - segundo os estereótipos ficcionais - muda perante os nossos olhos, obrigando a ler o álbum até à última página, para termos a certeza que não somos iludidos mais uma vez - ou para desfrutar de uma última surpresa?


O último homem...
Jérôme Félix (argumento)
Paul Gastine (desenho e cor)
Gradiva
Portugal, Março de 2021
233 x 313 mm, 72 p., copr, capa dura
16,50

(imagens disponibilizadas pela Gradiva; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

8 comentários:

  1. O problema é mesmo esse. Lê-se até à última página das poucas páginas que tem. A 16,50€ por 72 páginas. A nova coleção do Peter Pan Asa/Público com pouco mais de 60 pág está pelos 10,00€ cada livro. Agora 17€ por 72 pág, por melhor que seja a obra. A Gradiva não compreende em que situação está o país? Poucos estão a sobreviver à crise com o mesmo poder de compra que tinham antes da pandemia.

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    1. Não é possível fazer comparações entre as colecções publicadas com o Público e as edições que saem para livrarias.
      As colecções com o jornal têm maior tiragem por esse facto e beneficiam de melhores margens na venda em banca. É por este último factor que algumas editoras - G. Floy, A Seita - têm optado por uma primeira distribuição em bancas.
      17€ por um álbum em formato franco-belga grande, com 72 páginas, parece-me um valor justo, mas compreendo que para muitos, ainda mais na situação que o país está a viver, possa ser demasiado caro.
      A nível de comparação em França, onde as tiragens são maiores e as editoras não pagam legendagem nem tradução, o mesmo álbum custa 17,90 €.
      Boas leituras!

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  2. Compreendo! Mas o esforço de um francês dar 17,90 € em bem menor que um português dar 16,50 €, basta comparar os salários médios de cada país. Se o livro custasse 25 € em França continuava a ser mais barato que em Portugal, comparando os salários de cada país. A BD é cara em Portugal e isso era assumido pelos compradores de BD em Portugal, mas se já só um nicho comprava BD agora esse nicho se reduz ainda mais face à pandemia. Por isso questiono se com esse valor a Gradiva vai conseguir vender os exemplares suficientes para pagar o custo da edição?

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    1. Concordo que em França o mesmo valor, poder ter menos peso nas finanças. No entanto, parece-me injusto focar a questão na Gradiva.
      O preço deste álbum é similar ao de todas as editoras nacionais; senão vejamos alguns exemplos: A Seita - Tex: A Chicotada, 56 p., 14€, formato menor; Arte de Autor - Duke #5, 56 p., 16,50€; Arte de Autor - Armazém Central #1, 72 p., 21€; a própria ASA citada: Blake e Mortimer - O grito de Moloch, 56 p., 15,90 €. Fico com a sensação que este é mesmo o preço possível para editar BD em Portugal, com as condicionantes existentes.
      Boas leituras!

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    2. Não estava a atacar a Gradiva. Comentei a Gradiva como poderia comentar outra editora. No entanto, saiu novamente nas bancas a Imperatriz da G Floy com o dobro das folhas e formato Deluxe, mais barato que esta obra da Gradiva. Quanto ao plano editorial da Gradiva só tenho de elogiar porque as suas obras têm muita qualidade.

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    3. Uma das razões - talvez a principal - para os preços da G. Floy, para além do formato americano que faz alguma diferença, é o facto de co-imprimir as suas edições juntamente com as edições equivalentes polacas.
      Boas leituras!

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    4. A Co-impressão sempre foi uma boa solução. Já a Taschen fazia isso há muitos anos aproveitando que o texto era apenas preto e mudando apenas esse fotolito de língua para língua ... os restantes eram os mesmo para todo o mundo. O problema é que a parceria da G-Floy é a exceção e não há nenhuma grande editora que queira emita a Taschen mas na BD, pelo menos em Portugal.

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    5. A co-impressão no caso da G. Floy é mais fácil porque é a mesma pessoa a responsável pelas editoras portuguesa e polaca, o que torna fácil agendar lançamentos ao mesmo tempo. E tenho ideia que em tempos isto também se estendia às edições dinamarquesas.
      No caso das edições franco-belgas, é raro haver acompanhamento da edição original - embora haja excepções como Astérix ou Blake e Mortimer - mas em tempos uniam-se editoras de vários países - Portugal, Espanha, Alemanha... - para uma impressão comum algum tempo após o lançamento da edição francófona...
      Boas leituras!

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