Série de sucesso dos anos 1980/90, em grande parte devido à invulgar base gráfica abraçada pelo autor, a pintura a óleo, O Mercenário está de regresso às livrarias portuguesas, numa nova e cuidada edição, que lhe faz justiça.
Resumo
No ano 1000 da nossa era, numa zona montanhosa imaginária, que as condições climatéricas permitiram que se desenvolvesse de forma díspar do restante planeta, um mercenário aluga os seus serviços a quem paga mais e, montado em dragões voadores, parte em resgate de belas donzelas, em cidades repletas de perigos e armadilhas.
Desenvolvimento
Variação curiosa do mito de São Jorge e o Dragão, com novas alianças na concretização do triângulo guerreiro-vítima-besta, em meados dos anos 80 O Mercenário tornou-se rapidamente um sucesso, numa altura em que a banda desenhada espanhola explodia e dava cartas ao mundo. Curiosamente, o seu protagonista - e a sua temática - estavam longe da modernidade sedutora dos tebeos da época, das suas personagens imorais e violentas e das suas temáticas marginais, assentando antes num registo clássico e, até certo ponto, num retomar (antes do tempo) do velho espírito da cavalaria.
Se as mulheres pouco vestidas - escrever nuas será mais assertivo - podem ter sido um pormenor a mais para esse sucesso, o mundo misterioso e desconhecido - em que tudo é portanto possível, e onde os anacronismos surgem como naturais e aceitáveis - terão tido certamente maior contributo.
Mas, é incontornável, foi a técnica utilizada por Vicente Segrelles que alcandorou esta sua criação para os píncaros, um pouco por todo o mundo leitor de BD. Refiro-me à técnica de pintura a óleo, de todo improvável na narração aos quadradinhos, mas que ele já utilizava na ilustração de cartazes e capas de livros e que se revelou acertada para recriar o seu mundo fantástico, assim dotado de espessuras, texturas e volumes invulgares.
Em sentido contrário, a verdade é que, com cada vinheta transformada num pequeno quadro de pendor clássico, a técnica revelou limitações em aspectos fundamentais da narrativa sequencial, nomeadamente na falta de dinamismo e na capacidade de transmissão de movimento, relembrando o velho adágio de que nem sempre um bom desenhador é um bom desenhador de BD... Mas, se para alguns ascetas mais rigorosos isto era um entrave, os leitores - que extravasaram o círculo habitual da banda desenhada - deram o seu beneplácito a Segrelles, relevando o aspecto gráfico como fundamental e aceitando a linearidade do tom aventuroso, sem preocupação de segundas leituras, com histórias imaginativas mas com alguma previsibilidade, apesar de algumas surpresas e, principalmente, como já referido, pela exploração bem conseguida de um mundo com tanto de surpreendente quanto de fantástico.
O Mercenário foi editado entre nós pela primeira vez pela Meribérica, simultaneamente em capa dura e capa mole, tendo a editora lançado os primeiros 9 volumes, entre 1984 e 1999, alguns deles há muito difíceis de encontrar.
Agora, a Ala dos Livros faz O Mercenário regressar às livrarias portuguesas, com o intenção de editar a totalidade dos 14 volumes que a série conta. Fisicamente é mais uma excelente edição, que para além do formato maior, capa dura com imitação de tela nas lombadas, páginas de guarda diferentes de volume para volume e uma excelente impressão, acrescenta a cada livro 16 páginas com ilustrações, muitas delas inéditas, e, principalmente, comentários do próprio Segrelles: no volume #1, sobre a génese da série; no #10 sobre a introdução da pintura digital (!) para substituir a pintura a óleo.
O Fogo Sagrado, volume inaugural da série, serve de apresentação do protagonista e do mundo em que ele actua, numa aventura com sucessivos desenvolvimentos e algumas soluções bem pensadas, que prende o leitor curioso de ir descobrindo mais sobre aquele universo de paisagens desoladas, seres fantasiosos e os velhos pecadilhos do ser humano, bem espelhados na conseguida capa.
Quanto ao volume #10, Gigantes, até agora inédito em português, surpreende por recolher uma série de histórias curtas, para as quais a série parecia pouco talhada, e também pelo sentido de humor que está subjacente a cada uma delas, mas destoa um pouco do universo em questão, que até certo ponto se ressente da mudança gráfica.
A reter
- A originalidade da técnica de Segrelles, sem dúvida o pormenor distintivo da série;
- O universo fantasioso que se afirma pela surpresa constante e o seu imenso potencial;
- O lançamento do volume #1, para chamar novos leitores, a par do do volume #10, o primeiro dos inéditos no nosso país, é obviamente uma estratégia bem pensada;
- Os dossiers em cada livro são uma indiscutível mais-valia sobre o autor e a série;
- Mais uma magnífica edição da Ala dos Livros, que fará muitos dos detentores dos álbuns da Meribérica pensar duas vezes - ou nem isso…
Menos conseguido
- A falta de movimento do traço, o que parece não ter incomodado os leitores de há 30 e tal anos…
- Na página 34 do volume #1, falta uma legenda na terceira vinheta; não sendo indispensável para a compreensão plena do relato, fica como uma nódoa (num excelente pano), mas nada que deva pôr em causa a compra e fruição de uma edição deste quilate.
O
Mercenário #1 - O fogo sagrado
O
Mercenário #10 - Gigantes
Vicente
Segrelles
Ala dos Livros
Portugal,
30 de Junho de 2021
235
x
310
mm, 64
p.,
cor,
capa dura
EAN
: 9789885472697
19,90
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar neste link para apreciar outras ou nas aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Tenho todos os volumes da primeira edição (e até os restantes, em língua espanhola) e agora é grande a indecisão relativamente à compra dos volumes repetidos, uma vez que esta edição parece ter uma qualidade superior e que estamos na presença de uma B.D. inigualável.
ResponderEliminarEsse é o problema de muitos leitores em relação a novas edições - O Mercenário, Peter Pan, Largo Winch, Blueberry... - manter os antigos ou duplicar os títulos? O dinheiro e o espaço determinam a resposta
Eliminar...mas a verdade é que as edições actuais deixam água na boca a qualquer pessoa que goste de BD.
Boas leituras... em boas edições!
Não é bem, de lembrar que as edições antigas beneficiam de não conter o aborto ortográfico.
EliminarNo meu caso apenas troco se tiver mesmo de ser, no caso das Druunas, por exemplo, apenas comprei o que ainda não tinha, mantendo as antigas edições da Meribérica que ainda se aguentam pois tinham bom papel.
Esse é outro lado da questão, a que, pormenorizando, se poderia acrescentar a tradução em si, a legendagem...
EliminarNo caso de O Mercenário, a edição da Ala dos Livros não segue o Acordo Ortográfico. É mais um ponto a seu favor!
Boas leituras... bem escritas!
Como é que conseguiram? eu geralmente só vejo que as novas edições são obrigadas a cumprir o acordo.
EliminarNão é obrigatório? Eu sou obrigado a usar profissionalmente.
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EliminarO AO não é obrigatório, embora os serviços públicos e a administração do Estado o imponham (e mesmo assim não absolutamente). Aliás, diria que a maioria das editoras de BD portuguesas NÃO usam: nem A Seita, nem a G. Floy, ou a Levoir, ou a Arte de Autor e a Ala dos Livros o usam. A Levoir só usa na colecção dos Clássicos por questões de recomendação dos livros em escolas.
EliminarA ASA e a Gradiva usam, o que já é de si uma grande fatia do mercado.
ResponderEliminarPor essa mesma razão desenxabida das recomendações dos livros em escolas.
Por regra não seguimos o AO. A única situação em que, infelizmente, temos de o fazer, tal como todas as outras editoras, é para evitar dificuldades em títulos que pretendemos venham a ser listados no PNL.
ResponderEliminarAbrimos uma excepção com o "Orwell", por exemplo.
Ricardo, o PNL não obriga à utilização de AO, essa pergunta foi feita directamente por mim à Júlia Martins, responsável pelo programa; é recomendado para as idades inferiores a 16, mas não obrigatório. Tanto que a G. Floy e a Levoir têm imensos livros recomendados pelo PNL que não usam AO
ResponderEliminarJosé Freitas, sim mas tenho para mim que não sendo obrigatório, facilita.
EliminarTalvez não em termos "regulamentares" mas sou bastante desconfiado dessas coisas.
O que a nossa amiga da FNAC me disse aqui há uns tempos, e repetido pela Bertrand, é que a menção do PNL +Ler tem zero de impacto na venda de livros não-infantis. Perguntei-lhe se valia a pena colocar um autocolante na capa a dizer que os livros tinham sido recomendados e ela disse que se fosse pelas vendas, não valia a pena (falando de BD não-infantil, claro).
EliminarE depois, quem participa no júri para tratar a BD já me confirmou que a questão do AO nunca se levantou sequer, nem faz parte dos critérios de avaliação.
Este comentário foi removido pelo autor.
EliminarAinda me vão dizer que a razão de termos tanta BD e livro "estragado" foi apenas porque quiseram ser mais papistas do que o Papa :)
ResponderEliminarE depois vou ficar triste :(
“Não me pelo pelo pelo de quem para para resistir”
ResponderEliminarEu não diria melhor! lol
EliminarSomos realmente um povo "sui generis"! Os "chefes inventam coisas" e nós vamos todos atrás, como cordeiros!!!
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