Kraken Edición Integral

Encontros

Cruzei-me várias vezes com Jordi Bernet nos últimos 20 anos do século XX. Uma única vez presencialmente - em Angoulême? em Barcelona? convidando-o para uma presença no Salão Internacional de BD do Porto que nunca se concretizou - a maior parte delas como leitor ávido. Num dos casos de Kraken - agora reunido nesta aconselhável edição integral.

Suponho que a primeira vez que li uma obra desenhada por Jordi Bernet, que olhei atentamente para o seu traço sujo, duro e expressivo, (mais tarde) contrastado com a brancura imaculada (nem por isso…) das suas belas e sensuais mulheres, foi em Paulo Foran, no Mundo de Aventuras. Depois, numa ordem que não consigo - nem preciso de - estabelecer, reencontrei-o em Torpedo 1936 (na CIMOC, nos álbuns da Editorial Futura e em O Mosquito), nos contos da Série Negra (outra vez na CIMOC?), neste Kraken (na Metropol e na Animal…)

Se Torpedo 1936 e a Série Negra já tiveram o merecido destaque aqui no blog, a descoberta da recente edição deste integral de Kraken colocou-o de imediato no topo das minhas listas, de desejos, primeiro, e de leitura, depois.

Leitura já concretizada, numa voragem irresistível, que me levou de novo a mergulhar nos subterrâneos imundos da fictícia cidade de Metropol. Imundos, sim, porque é neles que desagua toda a podridão e porcaria da superfície, porque é neles que os mais baixos instintos dos habitantes citadinos encontram a sua realização, porque é neles, finalmente que habita o Kraken, o ser abjecto, misterioso e letal a que poucos sobreviveram.

O protagonista - chamemos-lhe assim para simplificar a escrita - é o tenente Dante, chefe de uma das patrulhas encarregadas de percorrer os subterrâneos. Disposto a cumprir o seu dever, revoltado com muito do que vê e ouve, é mais um anti-herói (quase) impotente face a toda a corrupção e malvadez de que se vai apercebendo.

Chamei há pouco - a contragosto - protagonista a Dante - e ele é-o - mas a verdade que acima dele - omnipresente, quase omnipotente - surge o Kraken que, embora invisível ou apenas uma sombra, está constantemente a pairar como ameaça muda sobre todos aqueles que se aventuram nos múltiplos segmentos que se entrecruzam no subsolo de Metropol.

Se estas premissas já parecem suficientes para encher páginas de relatos curtos, eles são enriquecidos com os pequenos (grandes) nadas quotidianos que encontramos em Metropol como em qualquer outra cidade: corrupção, ganância, busca do lucro fácil, vingança, violência, abuso, roubo… Que levados a cabo tantas vezes às escâncaras à superfície, ganham novas formas - novas sombras, matizes mais sombrios, tonalidades mais negras, numa exacerbação da violência e do desprezo da vida humana, quando narrados nos claustrofóbicos túneis em que praticamente toda a acção decorre. E nos quais, pontualmente, brilham lampejos do melhor do ser humano: humanidade, dedicação, entrega… sempre misturados com os clarões das armas que despejam as suas balas, e com o ressoar dos ecos que esses disparos provocam.

Embora dividido em episódios de 6 a 12 páginas, autónomos e auto-conclusivos, Kraken pode ser encarado como um imenso fresco, em que cada mosaico - cada episódio - adiciona um pouco mais à imagem triste, desencantada e muito crítica da sociedade humana que Segura e Bernet, numa perfeita combinação de talentos nos transmitem.

Lançada em 1983, em pleno boom da banda desenhada espanhola, adulta, provocadora e estimulante, a revista Metropol foi o berço de Kraken. Aquela outra aventura é evocada por Leopolodo Sánchez e pelo próprio Jordi Bernet - Antonio Segura faleceu em 2012 - de forma contida mas com emoção nesta edição integral que também inclui fotos da época e algumas ilustrações e esboços do desenhador catalão.

Kraken Edición Integral
Antonio Segura (argumento)
Jordi Bernet (desenho)
Editorial DQ
Espanha, 2021
200 x 270 mm, 176 p., pb, capa dura
ISBN: 978-84-123636-1-6
20,00 €

(capa disponibilizada pela Editorial DQ; pranchas recolhidas no site Zona Negativa; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)