Lorenzo Chiavini
Futuropolis (França, 15 de Maio de 2012)
210 x 290 mm, 136 p., cor, cartonado
20,00 €
Resumo
No tempo das cruzadas, perto do Mediterrâneo, muçulmanos e
cristãos procuram os heróis que os hão-de guiar à vitória no confronto que se
avizinha.
Os primeiros, vasculham a floresta profunda na busca por Ferragus,
antigo guerreiro, hoje eremita em busca de perdão para acontecimentos terríveis
do seu passado.
Os segundos, encontrarão inadvertidamente o seu, Berto, um
carpinteiro acidentalmente trespassado por uma relíquia sagrada, pouco predisposto
para as coisas da fé e da guerra, mais sensível ao bem comer e bem beber e às
belas mulheres.
Desenvolvimento
O resumo adivinha-o e realmente este é um relato onde
Leonardo Chiavini, natural de Milão, antigo desenhador Disney e actualmente a
viver na casa dos autores de Angoulême, lança um olhar profundamente irónico
sobre a fé dos contendores – as “feses” deles, diria alguém que conheci – e os
artifícios religiosos.
Essa ironia revela-se no texto recheado de segundos
sentidos, nas situações repletas de picares de olho e de provocações, na
caracterização e motivação das personagens.
Como o cruzado descrente da sua santa missão. Ou o herói
infiel, antigo combatente sanguinário, avesso agora à violência e transformado
em penitente. Ou a “santa pecadora” – o que por si só é já um soberbo conceito
– que para complicar as coisas, vai intrometer-se e escolher Berto para
acasalar e lhe dar um filho abençoado… Ou ainda o chefe espiritual dos cristãos
(o seu “papa”), um abade senil, puro joguete nas mãos dos seus seguidores (ou
serão eles os senhores?) mais próximos.
Aliás, o acidente que “revelará” o novo herói, deve-se à sua
fraqueza de mãos, pois deixa cair da varanda sob a qual o povo se apinha, a
santa relíquia do lugar, a “verdadeira” lança com que Cristo foi trespassado na
cruz (igual a umas tantas espalhadas por outros lugares santificados…?). Acontecimento
do qual Chiavini parte para discorrer sobre a facilidade com que se criam
santos e santinhos, mártires e heróis de fé, a necessidade que as multidões –
pobres e ignorantes, conduzidas por quem delas se quer aproveitar – busca – e encontra
– nos acontecimentos mais banais “sinais” e “milagres” em que acreditam (mesmo
que à força), pois isso é mais fácil do que tomar decisões ou perpetrar acções,
o oportunismo com que os líderes religiosos manobram e distorcem para ajustar a
realidade aos seus interesses.
Porque, voltando atrás, o infeliz Berto, o “indicado pela
vontade divina”, com tanta sorte – ou será na verdade azar? – não morre com o
golpe do artefacto sagrado! “Milagre” gritam de imediato alguns – alguns dos
que teriam que tomar esse lugar na batalha…? – temos um “santo”! Santo esse
que, revelando de imediato os seus de pés – e veremos depois, algo mais – de
barro, reage de forma bem humana com bem colorida expressão, ao golpe recebido.
Aliás, as suas reacções bem humanas – bem pouco santificadas –
multiplicar-se-ão, para desespero dos acólitos que tentam à força – não foi
quase sempre assim na história do catolicismo? – convertê-lo.
Por isso, o “acontecimento único” original, há-de ser recriado
para criar (à pressão) um paladino manobrável e mais predisposto ao cumprimento
da sua nobre missão.
Não quero adiantar mais sobre esta história – que tem muito
mais do que atrás deixei exposto. Uma história que assenta em traições,
segredos esconsos, mentiras e equívocos. Uma história que vai desvelando em
paralelo o que se passa entre mouros e entre cristãos, num crescendo paulatino que
há-de conduzir ao embate inevitável (ou não?). Uma história longa, consistente,
bem construída e explanada, coerente que, para lá do divertimento que o seu tom
irónico proporciona, faz pensar na forma como tantas vezes fomos/ainda somos
manobrados pelo poder religioso, até pela inevitável comparação com o tempo
presente, no qual o confronto (religioso) ocidente/oriente se perpetua.
Mas não termino sem destacar igualmente que Chiavini, para
lá de um excelente argumentista, se revela também um soberbo desenhador. O seu
traço esguio, expressivo e caricatural q.b. para reforçar o tom geral sem o
deixar descair para a provocação simples e vazia, revela-se perfeitamente adequado
para dotar a narrativa gráfica de um assinalável dinamismo, ao mesmo tempo que o
autor revela uma grande facilidade em utilizar as imagens como único veículo
narrativo em diversas sequências mudas mas bastante eloquentes e perfeitamente
legíveis.
A reter
- O grafismo de Chiavini, que me conquistou enquanto autor
completo.
- A forma demolidora como retrata ambas as facções
religiosas em oposição, realçando as imensas semelhanças entre os seus discursos,
acções e propósitos, mostrando claramente que se as palavras “Alá” e “Deus” fossem
trocadas de sítio (de boca) nada de substancial se alteraria.
- O toque de génio, como que (se) decide a batalha final, à
revelia de santos e heróis - numa verdadeira demonstração da vontade divina?