
Se na maior parte dos jornais, o acontecimento só merecerá umas poucas linhas, se pudesse, Pekar faria dele o argumento de mais uma das suas bandas desenhadas. Porque, como costumava dizer, “se me aconteceu o mundo tem que saber”. Mesmo que o mundo seja o micro-cosmos que lê os seus comics auto-editados primeiro, desde 1976, no catálogo da Dark Horse desde o início da década de 90.

Mas será que a vida de Pekar tem algum interesse? Não, dizem alguns. Não passa da existência simples e vulgar de alguém pertencente à classe média baixa, durante 30 anos arquivista num hospital da cidadezinha de Cleveland, nos EUA. Ou sim, segundo outros. Por isso o seu comic é objecto de culto e até deu origem ao filme que hoje estreia em Portugal. Em resumo, “American Splendor” é um daqueles casos típicos que ou se ama ou se odeia...
E o seu título é, desde logo, enganador, pois Pekar mostra o “esplendor americano”, pelo seu pior lado, em oposição às tradicionais bandas desenhadas de super-heróis que glorificam tudo o que é “made in USA”. Porque o esplendor de Pekar é tudo menos esplendoroso. É um retrato nú e cru do seu dia-a-dia. Episódios soltos, isolados, cuja narrativa pode começar a meio e terminar em aberto, antes que se lhes adivinhe um “fim tradicional”.


Claro que há excepções à regra. Mas são poucas. Geralmente relatos musicais (Harvey Pekar é também coleccionador e crítico de jazz), aconselhamento de um livro (também faz crítica literária), casos que lhe foram contados e, mais recentemente, “Unsung hero”. Editada em 2003, desenhada por David Collier, é a história verdadeira de Robert McNeil, um negro que, ingenuamente se inscreveu no exército norte-americano, antes da maioridade, na altura da guerra do Vietname, que nos conta o seu dia-a-dia no meio de rotinas e combates, problemas de racismo e o relacionamento com os autóctones, de uma forma directa, serena, mas não isenta das emoções que só a vida real proporciona.
Se começou com Crumb ao seu lado, Pekar - que apenas escreve os argumentos fornecendo-os em forma de planificação primária ao ilustrador - nem sempre tem sido feliz nos desenhadores que encontra e “American Splendor” ressente-se disso. Se Crumb e Sacco, nomes grandes da BD, bem como Neufeld ou Zabel, são excepções àquela regra, outros dos que têm passado pelas páginas dos seus comics são mais ilustradores do que autores de BD, o que não permite que as narrativas se apresentem com toda a força e eficácia que os argumentos prefiguravam.

Desde 2009, iniciara na Internet The Pekar Project, um site criado em conjunto com outros criadores, com textos e bandas desenhadas auto-biográficas, que agora assumirá o cariz de um imenso memorial de um autor controverso, sobre quem Robert Crumb afirmou: "Yeah, o Harvey é um ego-maníaco, um caso clássico, um dedicado, compulsivo judeu louco... Mas, de outra forma, como é que ele poderia ter publicado tantos comics, quase sem dinheiro, completamente isolado do mundo da BD, constantemente a implorar ou a ameaçar artistas para ilustrarem as suas histórias? E distribuindo ele mesmos as revistas!? Só um ego-maníaco persistiria diante de tantos sofrimentos. Eu desenho para ele por dois motivos: primeiro porque adoro a sua forma de contar histórias, e segundo para ele não me chatear!".
(Versão revista e actualizada do texto publicado no Jornal de Notícias de 4 de Março de 2004, a propósito da estreia do filme “American Splendor”)