Mostrar mensagens com a etiqueta Zé do Boné. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Zé do Boné. Mostrar todas as mensagens

05/08/2012

Andy Capp: 55 anos a beber e a dormir















O texto que se segue serviu de base à apresentação de dois álbuns de Andy Capp – aliás Zé do Boné – que fiz em 2007, a convite do jornal O Primeiro de Janeiro, na sessão comemorativa dos 140 anos daquele jornal.


Quero começar por agradecer ao Primeiro de Janeiro e à Fólio Edições este convite para vir aqui falar do Zé do Boné.
Um convite que me levou num duplo regresso ao passado.

Primeiro, por que me fez relembrar os anos em que colaborei com o Primeiro de Janeiro, onde comecei a escrever a sério sobre BD.
Depois, porque foi a oportunidade de recordar uma das bandas desenhadas da minha infância e juventude.
Conheço Andy Capp, ou melhor, o nosso Zé do Boné, desde pequenino, das páginas do Primeiro de Janeiro, que o meu avô materno comprava diariamente.
Nesse jornal, descobri, também as bandas desenhadas do Caderno Dominical - que foi uma referência para todos os que gostam de BD em Portugal. Relembro em especial as aventuras do Príncipe Valente e as peripécias mudas do Reizinho.
Mas, falando do Zé do Boné, para começar, deixem-me dizer que é preciso uma grande dose de coragem para publicar as suas tiras nos nossos dias.

Desde logo porque é precisa coragem para publicar livros em Portugal, mais a mais de BD.
Depois, porque é precisa muita coragem para publicar uma personagem tão politicamente incorrecto como o Zé do Boné.
Num tempo em que o lobo mau já não come porquinhos nem se pode atirar o pau ao gato, é preciso coragem para promover um herói preguiçoso, desempregado por opção, que bebe até cair para o lado, fumou até aos anos 80, é machista, bate na mulher, namorisca todas as raparigas que vê, faz apostas, pratica a violência no desporto, é implicativo e conflituoso. 
Foi a 5 de Agosto de 1957 que o Zé do Boné apareceu pela primeira vez. Há 50 anos, portanto. Não ainda como tira diária mas como cartoon. E ao contrário do que é normal neste género de banda desenhada, não teve origem norte-americana, mas sim britânica, pois foi publicado pela primeira vez nas páginas da edição regional do "Daily Mirror".
Na origem, recuperava um estereótipo habitualmente associado aos habitantes de Hartlepool, uma cidade operária do nordeste da Inglaterra, onde o seu autor residia. Mas, apesar dos seus muitos defeitos e do retrato negativo transmitido, foi rapidamente adoptado pelos seus concidadãos.
Em cerca de seis meses passou a tira diária e prancha dominical, e trocou a distribuição regional pela circulação nacional.
Aos Estados Unidos, país pai das tiras diárias de imprensa, chegaria em 1963, com igual sucesso. No seu auge chegou a ser publicado diariamente em 13 línguas, 50 países e 1400 jornais. Entre os quais o Primeiro de Janeiro, onde há quase meio século é uma referência

Na sua primeira aparição, o seu aspecto era substancialmente diferente, o traço era menos estilizado, mais pormenorizado e trabalhado, era mais alto e a sua mulher mais baixa, menos imponente. Mas já considerava o trabalho sagrado, não lhe tocando por isso.
Com o tempo o Zé assumiu o aspecto que lhe conhecemos hoje. Nariz e orelhas grandes, quase sempre encostado ao balcão do pub ou a dormir no sofá da sala, sempre com o seu velho chapéu aos quadrados, amarrotado, enterrado até aos olhos, e o cachecol ao pescoço. Muitas vezes de costas porque o autor, no início não tinha muito jeito para desenhar rostos, como admitiu numa entrevista.
O seu criador foi o britânico Reginald ou Reg Smythe, nascido a  10 de Julho de 1917.
Com uma infância e adolescência sem história, Smythe chegou tarde à banda desenhada, já com 30 anos, após mais de uma década no exército e nos correios.

O Zé do Boné, a que se dedicou toda a vida foi a sua única criação digna de registo. O seu traço era simples, mas eficiente e expressivo, mesmo escondendo quase sempre os olhos do Zé.
Reduziu os cenários ao mínimo indispensável e utilizou-os de forma repetida e exaustiva. Isso, permitiu-lhe assegurar durante décadas a tira diária e a prancha dominical, e fizeram do Zé do Boné um exemplo a seguir para os aspirantes a cartoonistas, no que toca à simplificação de processos.
Senhor de um humor directo, cínico e irónico, Reg Smythe limitou-se a reproduzir aquilo que o rodeava, exagerando nos podres, como que reflectidos por um espelho deformador.
Distinguido em 1974 como cartoonista do ano, Reg Smythe faleceu a 13 de Junho de 1998, vítima de cancro, deixando material para quase ano e meio de publicação.
Como sempre acontece nas tiras diárias de sucesso, o Zé do Boné sobreviveu ao seu criador, sendo hoje assinado por Roger Mahoney e Roger Kettle, que têm mantido a série dentro dos parâmetros gráficos e narrativos estabelecidos por Smythe.
Ao lado do Zé do Boné está quase sempre a sua mulher, Florrie, diminutivo de Florence, ou Flora/Flo, na versão portuguesa. Trabalhadora esforçada, divide o tempo entre a lida da casa, o trabalho, os mexericos com as vizinhas ou a mãe e os constantes conflitos com o Zé. Mas arranja sempre tempo para passar pelo pub e beber o seu copito e controlar o marido.
Em torno deles gravitam ainda Chalky, o melhor amigo do Zé, igualmente um inútil; Rube White, a confidente de Flo; Jack, o fleumático dono do bar; as diversas empregadas deste; o vigário que não perde a oportunidade de dar um sermão ao protagonista, embora no fundo saiba que é tempo perdido; o senhorio, que tenta ingloriamente receber as rendas atrasadas; diversos cobradores de dívidas, igualmente mal sucedidos; a sogra do Zé, que nunca é visível nas tiras, ouvindo-se apenas em off os seus comentários mordazes sobre o genro; o conselheiro matrimonial do Zé e Flora, incapaz de dar uma sugestão útil para o casamento; os muitos desgraçados anónimos a quem o Zé crava um copo ou deixa estendidos no campo de futebol ou râguebi.
O dia a dia do Zé do Boné é pouco diversificado: dorme, bebe, joga, discute com Flo, critica tudo e todos, inventa desculpas para a hora tardia a que chega a casa e pouco mais.
Tudo isto se passa na sua sala, no pub, na rua ou no campo de jogo.
Apesar disso, é espantosa a quantidade de situações diferentes que Smythe e os seus continuadores recriaram neste microcosmos ou os múltiplos desfechos diferentes para as muitas situações recorrentes na tira, explorando ao limite o cómico das situações.
Esta aparente limitação de espaços, personagens e situações, ajuda, no entanto, a ganhar o leitor, que rapidamente se familiariza com o herói, se assim se pode chamar, e se sente como que em casa em cada um daqueles locais que vai aprendendo a conhecer. O que o leva a aguardar, com interesse crescente, de que forma vão sendo renovadas as piadas, muitas vezes desconcertantes, quase sempre mordazes.
E que nos fazem sorrir de um dia-a-dia miserável que representa muito daquilo que nenhum de nós quer para si próprio.
É esta desconstrução de um quotidiano inquietante, possivelmente, o principal segredo do sucesso de uma personagem inconveniente, que dá pelo nome do Zé de Boné. E que eu vos convido a descobrir - ou redescobrir, como aconteceu comigo - nos álbuns da Fólio Edições que prometem, para o próximo ano, mais seis títulos, entre tiras diárias e pranchas dominicais coloridas [mas que infelizmente se ficaram por dois tomos, curiosamente o I e o III].




Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...