27/10/2011

O tesouro Tintin

Com a estreia (hoje, em Portugal) do filme de Steven Spielberg, que adapta as aventuras de Tintin, os fãs de Tintin, em especial os coleccionadores (que são muitos) aproveitarão para tirar a barriga de misérias pois os últimos anos, não tendo sido isentos de novidades nesta área, obrigavam a puxar bastante os cordões à bolsa, devido à política seguida pela Moulinsart, que detêm os direitos da personagem, apostada em produtos mais luxuosos para fazer de Tintin uma marca de eleição. Por isso, aliás, quando Nick Rodwell assumiu a direcção da Fundação Moulinsart, após casar com Fanny Remi, viúva de Hergé, uma das suas prioridades foi a não renovação ou o cancelamento das muitas licenças relacionadas com Tintin então existentes, pois o desenhador nunca colocou grandes entraves na sua concessão.Essa mesma política explica, também, porque é que a maioria dos produtos agora disponibilizados se baseia nos visuais do filme, pertencentes à Sony Pictures Releasing, e não nos desenhos originais de Hergé, pertencentes á Moulinsart. O que, segundo alguns especialistas de marketing, na perspectiva de serem realizados mais dois filmes, pode levar a que o Tintin do cinema “canibalize” o de Hergé. Ou seja, exactamente o contrário do que Moulinsart pretendia.Duma ou doutra forma, a verdade é que nunca foi possível encontrar produtos com Tintin com tanta facilidade e mesmo os fãs portugueses terão direito a uma “percentagem deste tesouro”. Desde logo, nos brindes coleccionáveis que a McDonalds começou a distribuir na Europa (Portugal incluído) na semana passada ou através da campanha que a Peugeot também trouxe até nós.
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Antes disso, de forma surpreendente, no final do Verão a Oysho disponibilizou quatro conjuntos de baby-dolls, desenhados em parceria com a Moulinsart, o que constituiu a primeira investida de Tintin na intimidade feminina...










Outros produtos onde dificilmente se adivinhava a efígie do repórter são, por exemplo, embalagens de comida para cães da Purina, nos EUA, e os brioches Pitch, disponíveis na Bélgica, França e Inglaterra, em ambos os casos associados a “caças ao tesouro” via internet.


Mais vulgares e também acessíveis, são os copos oferecidos pela gasolineira Total, na Bélgica, ou as figuras em PVC da Plastoy.






Já em França, há duas colecções em fascículos da Hachette, uma com figuras das personagens e outra com a caravela Licorne para construir em madeira. Uma terceira, um xadrez com as personagens do filme, está em fase de teste.



Vulgares baralhos de cartas, uma versão Tintin do “Mille Bornes”, um jogo de sociedade popular em França, um jogo de tabuleiro, construções Mecanno com os veículos utilizados por Tintin e até bilhetes de raspadinhas, na Bélgica, são outros artigos ao alcance de todas as bolsas.





Como é evidente, nos tempos que correm, também não podiam faltar as adaptações em videojogos das aventuras cinematográficas de Tintin, disponibilizadas já para consolas e telemóveis.

Os dois filmes de Tintin com actores de carne e osso, protagonizados por Jean-Pierre Talbot, "O Mistério do Tosão de Ouro" e "Tintim e as Laranjas Azuis, serão relançados numa edição conjunta em Blu-Ray.
Em termos de livros, se são vários os países a disponibilizar uma edição conjunta dos álbuns em que o filme se baseia, no mercado francófono multiplicam-se as edições que, entre: o romance e o álbum do filme, livros de jogos e mais estudos em torno da obra de Hergé e do seu herói, deverão rondar o milhão de exemplares.








Já nos Estados Unidos, onde o filme só estreia em Dezembro, os álbuns de Tintin, que até à data venderam apenas 5 milhões em mais de 30 anos, regressarão às livrarias com novas capas, mais actuais e chamativas.


Em Portugal, a ASA, que no próximo mês termina a reedição integral da colecção, em formato menor e com novas traduções, anunciou o lançamento de um álbum de grande formato intitulado “A Arte das Aventuras de Tintin”, baseado no filme de Spielberg.
Filme que valeu ao herói de Hergé chegar pela primeira vez à capa da Time distribuída esta semana...
(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 27 de Outubro de 2011)

26/10/2011

J. Kendall #77

Ameaça em domicílio
Giancarlo Berardi e Lorenzo Calza (argumento)
Enio (desenho)
Mythos Editora (Brasil, Abril de 2011)
135 x 178 mm, 132 p., pb, brochado, mensal
4,00 €


Resumo
Um assalto falhado a um banco, transforma-se num sequestro que a polícia de Garden City, encabeçada pelo procurador Robson e o tenente Webb, com a ajuda da criminóloga Julia Kendall, vai tentar resolver da melhor forma.

Desenvolvimento
Eu sei que Julia tem marcado presença regular (quase mensal) aqui, mas garanto que não tenho qualquer tipo de comissão por parte da Mythos. Isso deve-se apenas à qualidade das histórias, geralmente bem acima da média, às quais não tenho conseguido resistir e cuja leitura me tem inspirado estas reflexões. Não sei se com os meus textos já consegui seduzir algum leitor, mas acredito que quem aceitar o desafio de se embrenhar nos casos de polícia que vão surgindo em Garden City não dará o seu tempo por mal empregue.
Partindo de um universo credível e bem estruturado, que em cada episódio vai sendo desenvolvido e aprofundado, Berardi faz de Julia, mais do que uma série policial, uma crónica sobre o quotidiano das grandes cidades, através da introspecção e das reacções de cada um dos seus protagonistas regulares e daqueles que, geralmente criminosos, marcam individualmente cada edição, mas também dos figurantes anónimos que dão corpo e consistência a todas elas.
Este número, ia a escrever “não é uma excepção”, mas na verdade é bem mais do que isso. È um exemplo perfeito do que atrás afirmei, pela forma como o quotidiano de cada um dos intervenientes que foi/vai ser afectado pelo roubo e pelo sequestro, se enquadra na narrativa e é afectado pelo acontecimento central que serve de base à história. De base, sim, embora surja quase como menor, porque o enriquecedor do argumento de Berardi e Calza são os pequenos dramas – e alegrias – das várias pessoas – bem reais - que vamos conhecendo – e com as quais encontramos pontos de contacto. Mesmo que nalguns casos a sua participação seja apenas acessória ou passageira, deixando no leitor a vontade de conhecer mais acerca da sua vida ou do momento concreto que a história abordou.
O que não retira mérito ou interesse à trama central, de forma alguma, bem narrada e explanada, a dois tempos.
Por um lado a acção das autoridades a tentarem gerir da melhor forma o acontecimento, por outro a acção em si, na relação entre o assaltante/sequestrador e as suas vítimas, com vários momentos de suspense em que o frágil equilíbrio criado parece prestes a ser rompido, o que contribui para acentuar a tensão e prender o leitor. Que, no final, uma vez tudo resolvido (?...) ainda tem direito a um surpreendente revelação…

A reter
- A elevada qualidade média dos argumentos de Julia Kendall.
- A forma como a trama central se esbate para dar lugar à crónica do quotidiano.

25/10/2011

Les Ignorants

Étienne Davodeau (argumento e desenho)Futuropolis (França, 6 de Outubro de 2011)
200 x 270 mm, 272 p., pb, cartonado
24,50 €

Resumo
Como diz o subtítulo deste livro, este é o “relato de uma iniciação cruzada”. A iniciação de Richard Leroy, vinhateiro, no mundo da banda desenhada. E a iniciação de Étienne Davodeau, autor de BD, nos meandros do fabrico de vinho.
Em tom documental, o livro abarca quase um ano e meio da vivência em comum dos dois homens.


Desenvolvimento
O título dá o mote. Étienne Davodeau, um dos mais interessantes autores dos nossos dias, ignora tudo o que diz respeito às vinhas e ao vinho. É um ignorante.
Ricahrd Leroy, proprietário de uma vinha na região da Loire, ignora tudo o que diz respeito ao mundo das histórias aos quadradinhos. É um ignorante.
Este livro narra na primeira pessoa e num registo documental, como cada um deles vai iniciar o outro no seu universo próprio. Mesmo se Étienne tem dificuldade em distinguir vinhos, mesmo se Richard adormece quando tenta ler BD.
Porque este é um mergulho naqueles dois universos, díspares mas sedutores, potenciado pela paixão comum dos protagonistas pelo trabalho bem feito.
Por isso, ao longo do livro, acompanhando o trabalho dpos dois homens na vinha, acompanhando as suas escapadas ao mundo dos quadradinhos, vamos conhecer os segredos para a obtenção de um bom vinho: a poda, os cuidados a ter com o solo, a adubação, o sol, a (não) utilização de químicos, o fabrico das pipas, o controle do crescimento das videiras, as vindimas, a fermentação, o repouso, o engarrafamento, a degustação, as visitas de críticos…
E também saber pormenores sobre o desenvolvimento do argumento e do desenho, o fabrico físico dos livros, a importância do papel, a função do editor, vamos visitar as casas de Jean-Pierre Gibrat, Marc-Antoine Mathieu e Emmanuel Guibert (vendo os autores como raramente os vemos, no seu ambiente próprio, na sua mais simples condição de seres humanos normais… e descobrindo as suas concepções da BD, razões para as opções formais, temáticas e estéticas, formas de trabalhar), descobrimos porque Trondheim se retrata com um grande bico (numa explicação desenhada pelo próprio…), visitamos os festivais Quai des Bulles e de Bastia ou a exposição Moebius na Fundação Cartier…
Mas se o registo é documental, o tom é profundamente humano, cativante e sereno, em especial graças aos diálogos credíveis, verdadeiros e sinceros como só Davodeau sabe, pontuados aqui com humor, ali com fúria, depois com dúvida, mais à frente com surpresa, e através dos quais – como os protagonistas - somos iniciados naqueles dois mundos, aprendemos com as dúvidas de cada um que, em muitos casos, podem ser também as nossas. Acompanhamo-los no campo e nas exposições, provamos vinho e descobrimos bandas desenhadas como Watchmen, Maus ou Le Photographe (conhecemos mesmo dois co-protagonistas desta última, igualmente vinhateiros!), ouvimos as suas opiniões, os seus pensamentos, os seus desabafos…
Por isso, no final do livro, encontramos duas listas: os vinhos bebidos e as bandas desenhadas lidas…
Numa vintena de capítulos e quase 300 pranchas – vivas, dinâmicas, baseadas no essencial, retratando com rigor mas liberdade os locais por onde os dois passaram, transmitindo a paixão de Richard pela sua terra, descrevendo sem palavras as diferenças (de solo, irrigação, clima, vegetação) entre as diversas vinhas visitadas – Davodeau mostra a amizade forte que une os dois homens e transmite a paixão que cada um sente pela sua actividade, a honestidade com que cada um a encara e com as quais tenta conquistar o outro.
No fim, ganha o leitor - qualquer leitor, seja ele apreciador de vinhos, amante de BD, ambos ou nenhum dos dois - pois aprende sobre aquelas duas ocupações artesanais – criar BD, fabricar vinho - desfruta de uma história sensíuvel e humana e (re)descobre (outr)as potencialidades narrativas da banda desenhada.

A reter
- A superior capacidade narrativa de Davodeau.
- A honestidade apaixonada (e apaixonante) dos dois protagonistas em relação à respectiva arte.
- O belo objecto livro.
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