12/07/2018

Malditos amigos

Argumentista de cabeceira


Fui sempre - sempre…? - mais um leitor de argumentistas do que de desenhadores. A parte gráfica de uma BD - aceitando implicitamente que a separação pode ser feita… - foi sempre - sempre…? - suplantada pela história contada.
André Diniz é, neste momento, um dos meus ‘argumentistas de cabeceira’, cuja obra sigo.
Como autor completo - que também o é - ou só a escrever os argumentos é, para mim, nos últimos cinco anos - desde que me foi apresentado e descobri o seu trabalho - um dos autores mais interessantes, que narra histórias reais, sentidas, vividas - ou não…
[O Idiota é uma excepção, um pecadilho (in)compreensível, uma falha na bibliografia a que todos têm direito...]
O traço dele não é propriamente agradável: o risco grosso, os rostos angulosos, a multiplicação de traços, tracinhos e tracejados, não atraem propriamente. Paradoxalmente, são as obras que desenha que acabam por ter mais força, mais impacto. Digo eu. Quer o excelente Morro da Favelas, quer este Malditos Amigos não sofrem com o grafismo. As histórias são fortes e incómodas, as personagens consistentes e credíveis, o seu lado real - autobiográfico…? - dá ao conjunto uma força insuspeitada.
O que não nos impede - a nós leitores - de imaginar como ficariam num traço mais talentoso estas belas obras…

Chamar a uma (semi-)autobiografia Maldtos Amigos é uma ironia chocante. Mas é apenas o reflexo do espírito da obra e também do estado do seu protagonista, o tatuador Ramsés - semi-alter-ego de André Diniz? - zangado consigo, com a família, com os amigos, com os desconhecidos - com todos - com a vida, incapaz de sentir mais do que raiva e fúria, até em relação às pequenas coisas, incapaz de partilhar, de (cor)responder, em suma, incapaz de viver…
Malditos Amigos é a história da luta desse Ramsés com a doença - a depressão - que o consome, o destrói por dentro, à medida que ele se destrói por fora e destrói todas as pontes com quem o quer ajudar, o apagar de si mesmo e dos outros, o riscar o passado, riscar o presente… a acumular coragem - desespero - para se riscar de vez e ao seu futuro?
Mais do que narrar um sentimento e um estado de espírito derrotista, o mérito de André Diniz é conseguir torná-lo visível aos seus leitores, torná-lo legível aos nossos olhos, levar-nos a intuir, primeiro, e a sentir, depois, o estado limite a que Ramsés chegou.

Malditos Amigos
André Diniz
Polvo
Portugal, Junho de 2018
165 x 230 mm, 208 p., pb, capa mole com badanas
14,99 €

(imagens disponibilizadas pelo autor; clicar nelas para as poder apreciar em toda a sua extensão)

5 comentários:

  1. Muito bem Pedro, como eu, a história, o argumento, primeiro e acima de tudo. Eu comecei pelo Idiota...e achei incompreensível, pelo menos para um Professor de Economia :-) Acabei a comprar o romance do Dostoievski, que tenho intenção de ler estas férias, para ver se depois consigo entender a BD. Este comprei-o também, a conselho do Paulo Gomes, diretamente ao Rui Brito...e está já na enorme pilha da minha cómoda :-(

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    1. Por acaso o livro é inteligível para quem já tinha lido o original... a piada é ele ser tão minimalista e remeter para o mesmo conteúdo.
      Mas confesso que se não tivesse lido o original dificilmente entenderia a BD.

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    2. Com estes comentários, acabo de ganhar tempo para ler outras coisas. O Idiota irá ficar sossegado e dificilmente será lido...

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  2. Neste momento, no Brasil existem dois autores máximos: André Diniz e Marcelo Quintanilha. Quanto à quetão da arte, não lhe vejo qualquer problema, porque o André pensa narrativamente para a arte que usa. Todas as vinhetas são cuidadosamente pensadas, tornando a arte numa arte "feia" com um story telling perto da perfeição.

    Daí este é um caso em que não concordo totalmente com o que o Pedro diz. Percebo perfeitamente o que quer dizer, mas parece-me que neste caso, esta arte está longe de ser banal ou má.

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  3. Com todo o respeito pelo trabalho do André Diniz, o "Idiota" foi a única novela gráfica que não consegui acabar, irei um dia arranjar coragem para ler até ao fim. Talvez se a Levoir tivesse lançado outro livro dele fosse diferente, mas o "Idiota" não me parece ser a melhor abordagem ao autor para quem não o conhece...

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