05/07/2018

Afirma Pereira


Em busca da felicidade

Numa adaptação - em qualquer adaptação de um género narrativo para outro - a primeira avaliação a ser feita é se a obra funciona autonomamente no novo suporte.
“Afirma Pereira”, na adaptação em BD de Pierre-Henry Gomont, passa com distinção no teste. É uma obra autónoma e completa, com vida própria nos quadradinhos e - inevitavelmente - no espaço entre eles em que o leitor intui, sente, imagina, complementa tudo o que o autor não pode escrever/desenhar.

A acção deste romance situa-se maioritariamente em Lisboa, no final da década de 1930. Uma Lisboa oprimida, sob o peso da censura crescente, da moral católica vigente e do receio de denúncias - dos colegas, dos vizinhos, dos conhecidos, dos amigos - que limita a vivência, cerceia o pensamento, impede as acções.
Uma Lisboa triste, deprimida, vazia nas muitas ruas e praças mostradas, dando a entender que as pessoas não se expunham, não se mostravam, se escondiam, preferiam não ser vistas.
Uma Lisboa traçada com belas cores - o trabalho de cor de Gomont é belíssimo, assente em tons frios, pouco vivos, em que predominam os amarelos e os azuis, sem vida - e que fazem da cidade co-protagonista triste e melancólica deste romance desenhado.
Co-protagonismo dividido com o Pereira do título, intelectual responsável pela página de cultura do “Notícias” - um nome fictício para um jornal imaginário, retrato fiel do que seriam todos eles na época - sujeito ao lápis azul, antes dele ao olhar demasiado diligente do director, alinhado com o regime, por interesse ou convicção, pouco interessa.
Pereira, em quem se centra a história, viúvo de longa data, ainda preso às recordações da esposa - e às conversas que (não) tem com ela, em foto - vive confortável no seu casulo, onde se esconde do que o incomoda, onde se esconde de quem o podia desafiar ou simplesmente levá-lo a viver outra vez.
O encontro com um jovem idealista - e com a sua namorada - a quem contrata para escrever necrologias antecipadas de escritores, tornar-se-à um desafio permanente - pelo tom panfletário mas exacto, que o jovem adopta, fiel aos nomes escolhidos - e levará Pereira a questionar-se e a questionar, numa tomada de consciência progressiva - perigosa… - face à qual a sua vida vazia e monótona terá de ser repensada.
Certeiro no ritmo pausado que impôs, contido nos diálogos, brilhante na forma como traduziu em imagens as dúvidas e os diálogos interiores de Pereira, Gomont apresenta-nos uma obra - multi-premiada - que obriga a reflectir e a repensar o que condiciona a forma como nos posicionamos na vida.

Afirma Pereira
Adaptado do romance de Antonio Tabucchi
Pierre-Henry Goamont
G. Floy
Portugal, Maio de 2018
205 x 280 mm, 160 p., cor, capa dura
18,00 €

(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 3 de Julho de 2018; imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

2 comentários:

  1. Excelente trabaajo,leí la novela y ver el diseño es mágico.

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  2. "(...) Uma Lisboa oprimida, sob o peso da censura crescente, da moral católica vigente e do receio de denúncias - dos colegas, dos vizinhos, dos conhecidos, dos amigos - que limita a vivência, cerceia o pensamento, impede as acções. (...)
    Leio isto e penso que se aplica como uma luva às redes xoxiais de agora

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