Há
autores que associámos a uma única obra. [Ao
correr da escrita, Morris, com Lucky Luke é o primeiro nome que me
ocorre, mas Uderzo/Astérix seria outro.]
Nalguns
casos, fazê-lo é esquecer - injustamente - obras que a projecção
do principal destaque lançaram numa sombra injusta.
Se
Hugo Pratt é Corto
Maltese
(e vice-versa), limitar a carreira do criador italiano a essa obra de
referência, é ignorar outras criações relevantes, como Sargento
Kirk
ou estes Escorpiões
do Deserto.
Estreados em 1969, na revista italiana Sgt.
Kirk
- apenas dois anos depois de Corto surgir amarrado numa jangada, a
vogar no Oceano Pacífico
-
Os Escorpiões do Deserto são
muitas vezes considerados
uma banda desenhada de guerra - como o era, antes, Sargento
Kirk como
o seria, pontualmente/tangencialmente, Corto
Maltese
- mas
entender o hermetismo de uma classificação deste género como
absoluto - aqui, como em (quase) toda a produção de Pratt - é
extremamente redutor.
Em
Os
Escorpiões do Deserto
não há heróis nem vilões, não há heroísmo nem cobardia, há
apenas seres humanos a tentar sobreviver e, para isso, vale tudo:
trair, mentir, esconder, fugir e, sim, às vezes coragem, superação
e até loucura - literal e pontual, provocada pelo momento.
Por
isso, mesmo que aqui e ali o leitor se esforce, não consegue
encontrar nesta série personagens simpáticas ou emuláveis, apenas
seres humanos que, perante situações limite, se limitam a isso
mesmo: serem humanos, com todas as suas imperfeições, fraquezas
e defeitos.
É
verdade que alguns se destacam, mas raramente ostentam um
comportamento uniforme e a branco e preto; as zonas cinzentas acabam
sempre por surgir, por
se sobreporem e tornarem-se dominantes,
mostrando
o
pior do ser humano. Ou aquilo que lhe permite sobreviver. Entre eles,
apesar de tudo, não consigo deixar de salientar Cush - o etíope
com quem Corto (também) se cruzaria no sublime As Etiópicas -
uma das maiores criações de Pratt, cujo fascínio e cinismo fazem
sonhar o que teria sido uma série protagonizada por ele. Mas
talvez tenha sido melhor assim, para evitar saturação ou
cansaço e
deixar a sua aura brilhar - intensamente - ainda que apenas numas
poucas dezenas de pranchas.
Sem
se ressentir da passagem de meio século desde a sua criação,
assente (ainda)
num traço com um pendor bastante realista, mas
onde
brilham já os fortes contrastes entre o branco luminoso e o negro
espesso que são a imagem de marca de Pratt - reforçados em mais uma
magnífica edição da Ala dos Livros - esta é uma série que é
importante (re)descobrir para comprovar que, relativamente a Pratt,
há (imensa) vida para além de Corto.
Os
Escorpiões do Deserto
Obra
completa, volume 1
Hugo
Pratt
Ala
dos Livros
Portugal,
Outubro de 2019
235
x 310
mm, 112
p., pb, capa dura
ISBN:
978-989-54171-6-2
23,89
€
(imagens
disponibilizada pela editora; clicar nelas
para as aproveitar em toda a sua extensão)
Graças à Ala dos Livros e à Arte de Autor, esta é a melhor altura para se ser fã de Hugo Pratt em Portugal. Obrigado a ambas.
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