28/07/2020

Ana Pessoa: "Gostava que 'Desvio' fosse publicado na Bélgica e na França"



Tem por título Desvio - que As Leituras do Pedro já leram aquimarca um regresso da Planeta Tangerina à banda desenhada e é uma das (boas) surpresas em português do ano.
Os autores desta novela gráfica (também) sobre (um certo) confinamento - antes do tempo! - são Bernardo P. Carvalho e Ana Pessoa.
Esta última falou sobre a obra, a sua génese e as suas expectativas, na entrevista feita por correio electrónico que pode ser lida já a seguir.

As Leituras do Pedro - Qual a sua relação com a banda desenhada? Quando a descobriu? É leitora regular?
Ana Pessoa - Descobri a banda desenhada em Bruxelas, onde vivo há mais de dez anos. Há uma forte tradição de banda desenhada na Bélgica e são muitas as livrarias especializadas. Perto da minha casa há várias livrarias com excelentes selecções de bandas desenhadas e novelas gráficas.

As Leituras do Pedro - Quais os seus autores de BD preferidos?
Ana Pessoa - Gosto em especial da BD de autor, mais independente e alternativa. Sou grande fã de autores de agora, como Brecht Evens, Bastien Vivès, Julie Delporte.

As Leituras do Pedro - Como nasceu Desvio?
Ana Pessoa - Desvio nasceu numa conversa entre mim e o Bernardo. Há uns anos falámos de novelas gráficas e chegámos à conclusão de que ambos gostaríamos de fazer um desvio neste registo.

As Leituras do Pedro - Foi a sua primeira experiência em BD?
Ana Pessoa - Sim.

As Leituras do Pedro - Quais as principais dificuldades que enfrentou na sua escrita?
Ana Pessoa - Para mim o mais difícil foi desenvolver a narrativa visual. É uma narrativa puramente descritiva, nada literária, que acompanha toda a novela: onde está a personagem, o que está a fazer, o que vê, como é a sua expressão corporal, que objectos estão em destaque, etc.
E era necessário entrelaçar essa narrativa constante com a história propriamente dita. E desse encontro entre a narrativa visual e as reflexões da personagem surgiam novos elementos, novas leituras. Se a personagem está na varanda a pensar sobre o sentido da vida e vê de repente um carreiro de formigas, que leitura podemos fazer deste momento? Essa interacção permanente entre a linguagem visual e os dilemas do protagonista foi o mais desafiante e espantoso.

As Leituras do Pedro - Porquê a escolha do Bernardo para ilustrar Desvio?
Ana Pessoa - Esta é a nossa primeira novela gráfica, mas é o quarto livro que eu e o Bernardo fazemos em conjunto. Como disse, eu e o Bernardo falámos desta vontade de fazermos uma novela gráfica. O c nasceu dessa vontade. Não houve propriamente uma “escolha”. É para mim um enorme privilégio poder colaborar com um artista tão inventivo e extraordinário como o Bernardo.
Tenho trabalhado sempre com o Planeta Tangerina, de que o Bernardo P Carvalho é um dos fundadores.

As Leituras do Pedro - Como funcionou a sua colaboração com o Bernardo Carvalho? Qual foi a vossa forma de trabalhar?
Ana Pessoa - O resultado é colaborativo, mas o trabalho propriamente dito é extremamente solitário. Houve essencialmente três momentos. Primeiro escrevi eu o texto. Depois o Bernardo desenhou. E no fim, olhámos para o conjunto e fizemos uns quantos ajustes (ao texto e aos desenhos). Isto sempre com a colaboração fundamental da nossa editora e amiga (e tudo) Isabel Minhós Martins.
Ao contrário do que aconteceu nos projectos que fizemos anteriormente, com Desvio fomos partilhando o que estávamos a fazer ao longo de todo o processo de escrita e de desenho. Tínhamos sempre muitas dúvidas. No meu caso, queria saber se a tal narrativa visual fazia sentido, se era exequível, se os diálogos eram demasiado longos, se os momentos de reflexão eram evidentes, etc. No caso do Bernardo, a questão era saber se o ritmo das pranchas era adequado, se havia desenhos a mais ou a menos, se fazia sentido espaçar certas reflexões. E também coisas mais óbvias, como as cores e o desenho propriamente dito. E, como disse antes, em todo este diálogo contámos com a participação muito activa e perspicaz da nossa editora, a Isabel Minhós Martins, que deu sempre contributos muito importantes tanto para a história como para os desenhos.

As Leituras do Pedro - Esta é uma história que só podia ser contada em BD?
Ana Pessoa - Não. Há várias maneiras de contar uma história, felizmente. É possível falar do verão, da solidão, do tédio, do silêncio em qualquer registo. E há muito tempo que eu andava a escrever sobre estes temas. Mas, ao optar pela novela gráfica, abordei esta história de uma maneira muito própria. É uma história necessariamente lacónica, por exemplo. Não conta tudo. Mostra ambientes, momentos, sequências, mas o leitor nunca está dentro da cabeça deste rapaz. Não sabemos tudo sobre ele. Na verdade, não sabemos quase nada. Não há um narrador a contar-nos o que trouxe este rapaz a este verão solitário. Estamos a observá-lo por dentro e por fora, mas tudo o que é dito através do desenho e das palavras é muito sintético e contemplativo. E isto, sim, só seria possível através de uma novela gráfica, em que há espaço para a contemplação e uma interacção constante entre o texto e a imagem.
Por outro lado, há momentos na história que não me interessava explorar de forma mais literária. Estou a falar por exemplo dos ecrãs: videojogos, Instagram, mensagens, conversas ao telefone. São momentos muito reais e importantes no dia a dia do protagonista. Mas se eu tivesse optado por uma prosa mais exploratória, talvez tivesse passado ao lado disto. Numa novela gráfica, espreitamos o telemóvel deste rapaz, assistimos ao filme que ele está a ver, ficamos a ver um prato de comida a rodar no micro-ondas. Tudo isto é extremamente forte e determinante, mas não me interessaria explorar noutro registo, acho.

As Leituras do Pedro - Podemos dizer que Desvio é um retrato de uma geração sem objectivos, presa no mundo dos videojogos e das redes sociais?
Ana Pessoa - Não. É um retrato de uma sensação de vazio ou de bloqueio. Acho que todos nós nos reconhecemos neste rapaz. Há fases na vida - ou pelo menos momentos - em que pomos tudo em causa e a vida perde de repente o sentido. Tudo nos parece absurdo. Não é necessário ser um adolescente para sentir isso. E não é um sentimento de agora. Aliás, nunca se escreveu sobre outra coisa. Essa sensação de vazio, essa procura de um sentido é a condição humana.

As Leituras do Pedro - Apesar de se reconhecerem alguns locais de Lisboa, esta é uma história que ultrapassa limites físicos e geográficos?
Ana Pessoa - Sim. É uma história muito urbana. Mas diria que se pode passar em qualquer cidade do mundo ocidental.

As Leituras do Pedro - Que saídas há para tantos jovens como o Miguel, com quem nos cruzamos diariamente?
Ana Pessoa - A saída talvez seja antes uma entrada. O que acontece ao Miguel, parece-me, é um regresso a si próprio. Ele estava um pouco ausente da sua própria vida. No fundo, o silêncio e aquela sensação de vazio ajudam-no a tomar as rédeas e a perceber um pouco mais quem ele é. Não são só os jovens que andam à procura dessas respostas. Todos nós andamos nesse processo de auto-conhecimento.

As Leituras do Pedro - Que expectativas tem para Desvio?
Ana Pessoa - Eu não sou muito de ter sonhos muito concretos. Mas no caso do Desvio, tenho uma ambição muito específica: gostava de ver Desvio nas livrarias a que eu vou, ao lado de outras novelas gráficas e bandas desenhadas. Ou seja, gostava que este livro fosse traduzido para francês e publicado na Bélgica ou em França. Isso seria realmente fantástico.

As Leituras do Pedro - Este livro foi uma experiência única em BD ou pensa voltar a esta forma narrativa?
Ana Pessoa - Tenho vontade de voltar a escrever neste registo. Mas no meu caso teria sempre de ser um projecto colaborativo. Ou seja, não depende só de mim; tenho de ter outra conversa com o Bernardo!

(versão integral da entrevista que serviu de base ao texto publicado no Jornal de Notícias de 18 de Julho de 2020; imagens disponibilizadas por Ana Pessoa e pela Planeta Tangerina; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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