Tem por título Desvio - que As Leituras do Pedro já leram aqui - marca um regresso da Planeta Tangerina à banda desenhada e é uma
das (boas) surpresas em português do ano.
Os
autores desta novela gráfica (também) sobre (um certo) confinamento
- antes do tempo! - são Bernardo P. Carvalho e Ana Pessoa.
Esta
última falou sobre a obra, a sua génese e as suas expectativas,
na entrevista feita por correio
electrónico que pode ser lida já a seguir.
As Leituras do
Pedro - Qual a sua relação com a banda desenhada? Quando a
descobriu? É leitora regular?
Ana Pessoa -
Descobri
a banda desenhada em Bruxelas, onde vivo há mais de dez anos. Há
uma forte tradição de banda desenhada na Bélgica e são muitas as
livrarias especializadas. Perto da minha casa há várias livrarias
com excelentes selecções de bandas desenhadas e novelas gráficas.
As Leituras do
Pedro - Quais os seus autores de BD preferidos?
Ana Pessoa -
Gosto
em especial da BD de autor, mais independente e alternativa. Sou
grande fã de autores de agora, como Brecht Evens, Bastien Vivès,
Julie Delporte.
Ana Pessoa -
Desvio
nasceu
numa conversa entre mim e o Bernardo. Há uns anos falámos de
novelas gráficas e chegámos à conclusão de que ambos gostaríamos
de fazer um desvio neste registo.
As Leituras do
Pedro - Foi a sua primeira experiência em BD?
Ana Pessoa -
Sim.
As Leituras do
Pedro - Quais as principais dificuldades que enfrentou na sua
escrita?
Ana Pessoa -
Para
mim o mais difícil foi desenvolver a narrativa visual. É uma
narrativa puramente descritiva, nada literária, que acompanha toda a
novela: onde está a personagem, o que está a fazer, o que vê, como
é a sua expressão corporal, que objectos estão em destaque, etc.
E era necessário
entrelaçar essa narrativa constante com a história propriamente
dita. E desse encontro entre a narrativa visual e as reflexões da
personagem surgiam novos elementos, novas leituras. Se a personagem
está na varanda a pensar sobre o sentido da vida e vê de repente um
carreiro de formigas, que leitura podemos fazer deste momento? Essa
interacção permanente entre a linguagem visual e os dilemas do
protagonista foi o mais desafiante e espantoso.
Ana
Pessoa - Esta
é a nossa primeira novela gráfica, mas é o quarto livro que eu e o
Bernardo fazemos em conjunto. Como disse, eu e o Bernardo falámos
desta vontade de fazermos uma novela gráfica. O c
nasceu dessa vontade. Não houve propriamente uma “escolha”. É
para mim um enorme privilégio poder colaborar com um artista tão
inventivo e extraordinário como o Bernardo.
Tenho
trabalhado sempre com o Planeta Tangerina, de que o Bernardo P
Carvalho é um dos fundadores.
As Leituras do
Pedro - Como funcionou a sua colaboração com o Bernardo Carvalho?
Qual foi a vossa forma de trabalhar?
Ana Pessoa - O
resultado é colaborativo, mas o trabalho propriamente dito é
extremamente solitário. Houve essencialmente três momentos.
Primeiro escrevi eu o texto. Depois o Bernardo desenhou. E no fim,
olhámos para o conjunto e fizemos uns quantos ajustes (ao texto e
aos desenhos). Isto sempre com a colaboração fundamental da nossa
editora e amiga (e tudo) Isabel Minhós Martins.
Ao contrário do
que aconteceu nos projectos que fizemos anteriormente, com Desvio
fomos partilhando o que estávamos a fazer ao longo de todo o
processo de escrita e de desenho. Tínhamos sempre muitas dúvidas.
No meu caso, queria saber se a tal narrativa visual fazia sentido, se
era exequível, se os diálogos eram demasiado longos, se os momentos
de reflexão eram evidentes, etc. No caso do Bernardo, a questão era
saber se o ritmo das pranchas era adequado, se havia desenhos a mais
ou a menos, se fazia sentido espaçar certas reflexões. E também
coisas mais óbvias, como as cores e o desenho propriamente dito. E,
como disse antes, em todo este diálogo contámos com a participação
muito activa e perspicaz da nossa editora, a Isabel Minhós Martins,
que deu sempre contributos muito importantes tanto para a história
como para os desenhos.
Ana Pessoa -
Não.
Há várias maneiras de contar uma história, felizmente. É possível
falar do verão, da solidão, do tédio, do silêncio em qualquer
registo. E há muito tempo que eu andava a escrever sobre estes
temas. Mas, ao optar pela novela gráfica, abordei esta história de
uma maneira muito própria. É uma história necessariamente
lacónica, por exemplo. Não conta tudo. Mostra ambientes, momentos,
sequências, mas o leitor nunca está dentro da cabeça deste rapaz.
Não sabemos tudo sobre ele. Na verdade, não sabemos quase nada. Não
há um narrador a contar-nos o que trouxe este rapaz a este verão
solitário. Estamos a observá-lo por dentro e por fora, mas tudo o
que é dito através do desenho e das palavras é muito sintético e
contemplativo. E isto, sim, só seria possível através de uma
novela gráfica, em que há espaço para a contemplação e uma
interacção constante entre o texto e a imagem.
Por outro lado, há
momentos na história que não me interessava explorar de forma mais
literária. Estou a falar por exemplo dos ecrãs: videojogos,
Instagram, mensagens, conversas ao telefone. São momentos muito
reais e importantes no dia a dia do protagonista. Mas se eu tivesse
optado por uma prosa mais exploratória, talvez tivesse passado ao
lado disto. Numa novela gráfica, espreitamos o telemóvel deste
rapaz, assistimos ao filme que ele está a ver, ficamos a ver um
prato de comida a rodar no micro-ondas. Tudo isto é extremamente
forte e determinante, mas não me interessaria explorar noutro
registo, acho.
As Leituras do
Pedro - Podemos dizer que Desvio
é um retrato de uma geração sem objectivos, presa no mundo dos
videojogos e das redes sociais?
Ana Pessoa -
Não.
É um retrato de uma sensação de vazio ou de bloqueio. Acho que
todos nós nos reconhecemos neste rapaz. Há fases na vida - ou pelo
menos momentos - em que pomos tudo em causa e a vida perde de repente
o sentido. Tudo nos parece absurdo. Não é necessário ser um
adolescente para sentir isso. E não é um sentimento de agora.
Aliás, nunca se escreveu sobre outra coisa. Essa sensação de
vazio, essa procura de um sentido é a condição humana.
As Leituras do
Pedro - Apesar de se reconhecerem alguns locais de Lisboa, esta é
uma história que ultrapassa limites físicos e geográficos?
Ana Pessoa -
Sim.
É uma história muito urbana. Mas diria que se pode passar em
qualquer cidade do mundo ocidental.
As Leituras do
Pedro - Que saídas há para tantos jovens como o Miguel, com quem
nos cruzamos diariamente?
Ana Pessoa - A
saída talvez seja antes uma entrada. O que acontece ao Miguel,
parece-me, é um regresso a si próprio. Ele estava um pouco ausente
da sua própria vida. No fundo, o silêncio e aquela sensação de
vazio ajudam-no a tomar as rédeas e a perceber um pouco mais quem
ele é. Não são só os jovens que andam à procura dessas
respostas. Todos nós andamos nesse processo de auto-conhecimento.
As Leituras do
Pedro - Que expectativas tem para Desvio?
Ana Pessoa - Eu
não sou muito de ter sonhos muito concretos. Mas no caso do Desvio,
tenho uma ambição muito específica: gostava de ver Desvio
nas livrarias a que eu vou, ao lado de outras novelas gráficas e
bandas desenhadas. Ou seja, gostava que este livro fosse traduzido
para francês e publicado na Bélgica ou em França. Isso seria
realmente fantástico.
As Leituras do
Pedro - Este livro foi uma experiência única em BD ou pensa voltar
a esta forma narrativa?
Ana Pessoa -
Tenho
vontade de voltar a escrever neste registo. Mas no meu caso teria
sempre de ser um projecto colaborativo. Ou seja, não depende só de
mim; tenho de ter outra conversa com o Bernardo!
(versão
integral da entrevista que serviu de base ao texto publicado no
Jornal de Notícias de 18 de Julho de 2020; imagens
disponibilizadas por Ana Pessoa e pela Planeta Tangerina; clicar
nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
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