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23/02/2010

Marvels

Kurt Busiek (argumento)
Alex Ross (desenho)
BDMania (Portugal, Novembro de 2009)
175 x 262 mm, 240 p., cor, cartonado


Entre as muitas obras editadas com o selo da Marvel Comics, algumas há que se destacam pela sua qualidade e/ou originalidade. É o caso deste “Marvels”, cuja edição original norte-americana completou recentemente 15 anos mas que surge pela primeira vez numa (excelente) edição portuguesa (complementada com diversos extras), que reúne ambas as qualidades.
Desde logo, porque não é uma história ‘de’ super-heróis mas sim ‘sobre’ super-heróis, uma vez que estes, nas suas breves aparições de fundo, sempre distantes dos comuns mortais, quais deuses descidos à terra, servem apenas de pretexto para o avanço da narrativa, que explora a influência e as reacções que o surgimento do Capitão América, Quarteto Fantástico ou Homem-Aranha – quais semi-deuses fora do alcance e do entendimento dos mortais - teve nos cidadãos comuns.
Porque a história, baseada no percurso profissional e pessoal de Phil Sheldon, seguida pelo seu olhar – pela lente, uma vez que é um fotógrafo freelancer, acompanha (a cobertura que ele faz d)a génese e do desenvolvimento do Universo Marvel, primeiro com o Capitão América e o Tocha Humana, heróis de guerra contra os nazis; mais tarde, nos anos 60, com o aparecimento dos super-heróis “com problemas humanos”. Por isso, os fãs do género facilmente reconhecerão momentos marcantes ou recorrentes desse universo, como o casamento de Reed e Sue Richards, a morte de Gwen Stacy, as cruzadas de Jonah Jameson contra o Homem-.Aranha ou o ódio contra os mutantes X-Men. Mas, convém referir, o seu desconhecimento não é óbice para o pleno desfrute da obra.
Iniciada no final dos anos 30, a narrativa, subjectiva, feita em off por Sheldon, como tantos outros surpreendido pelo aparecimento dos super-heróis, que ele próprio apoda de maravilhas, vai mostrando como os salvamentos in-extremis e os actos heróicos dos super-heróis – bem como os seus efeitos colaterais… - vão influenciando a maneira de pensar e agir dos norte-americanos. Aliás, embora nunca percam para ele esse encanto – o que o leva a escrever um livro sobre eles - Sheldon não consegue deixar de acompanhar, mais, de experimentar, as mesmas reacções das multidões, consoante os momentos: surpresa, primeiro, depois confiança, mais tarde, dúvida, revolta, acusação... Numa bela demonstração da volatilidade do comportamento humano e da prevalência das emoções sobre a razão. E do medo e da desconfiança que o ser humano sempre mostra em relação a(o) que(m) é diferente.
Graficamente, “Marvels” é deslumbrante, com Alex Ross a multiplicar planos e vistas, alguns dos quais arrojados e de belo efeito, numa planificação multifacetada. O seu traço detalhado, (quase) fotográfico, confere à obra um tom mais realista, dando ao leitor, muitas vezes, a sensação de estar a ler uma reportagem sobre factos reais e não (apenas…) uma ficção, estabelecendo assim o tom adequado ao registo e contribuindo decisivamente para prender o leitor página após página.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 20 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

18/06/2009

Fábula de Bagdad

Fábula de Bagdad
Brian K. Vaughan (argumento)
Niko Henrichon (desenho)
BdMania (Portugal, Dezembro 2007)
178 x 264 mm, 136 p., cor, capa cartonada


Resumo

Abril de 2003. Durante um bombardeamento, um bando de leões foge do Jardim Zoológico de Bagdad. Famintos, perdidos, confusos, deambulam pelas ruas semi-destruídas até se encontrarem com uma patrulha norte-americana.

Desenvolvimento
Partindo deste acontecimento real - de uma história com princípio e fim conhecidos - Brian Vaughan, argumentista aplaudido, autor dos premiados ""Y" e "Ex-Machina" e também de alguns episódios de "Lost/Perdidos", parte para uma reflexão sobre a liberdade - se deve ser oferecida ou conquistada - e qual o preço a pagar por ela - qual o preço que ela merece? - numa fábula alusiva à situação real que se vivia então (que se vive ainda…?) no Iraque.
E se o título português reforça este último aspecto, perde a dualidade do original ("Pride of Baghdad"), no qual o vocábulo inicial significa tanto "bando de leões" como "orgulho".
Orgulho que existe, embora revelado de formas distintas nos quatro leões fugidos do zoo. Safa, a leoa mais velha, é a única que tem recordações - quase todas negativas -da vida em liberdade na savana, revelando quase sintomas do Síndroma de Estocolmo em relação aos humanos seus captores. Noor, a leoa mais nova, nascida em cativeiro, sonha desde sempre conquistar a liberdade. Para isso, tenta a união de todos os animais, embora seja evidente que os outros (lhe) pagarão um preço alto por essa liberdade - que para eles seria apenas momentânea. Zill, o macho, está acomodado, quase sempre pouco autónomo, prefere que as coisas aconteçam do que ser o agente que as origina. Sobra Ali, um jovem leãozinho, inconsciente, irreverente e com uma grande vontade de conhecer mundo.
E é da discussão destes diferentes pontos de vista, durante a deambulação, - que Vaughan não defende nem ataca, apenas expõe, sem dar respostas - que se faz o argumento, que flui de forma pausada, ao ritmo das palavras e dos pensamentos de que dota os animais, cujos diálogos quase fazem esquecer a sua condição de bestas, pois revelam bem mais da animalidade do ser humano, do que propriamente dos "reis da selva". Embora mostrem a sua condição "real" - todo o seu "orgulho" esquecido - nos momentos em que se suplantam para lutar pelas suas crenças e pela continuidade da sua união, embora ela pareça quase sempre inexistente.
Se numa BD texto e desenho devem formar um todo único, é impossível negar o peso do sumptuoso trabalho gráfico de Henrichon, hiper-realista no retrato dos animais, bem providos de ritmo e movimento, fazendo forte contraste com o cenário urbano em que evoluem, marcado pelo caos e destruição, num todo pintado com belíssimas cores quentes, que nos ambientam no sufocante Iraque real. E que é evocador enganoso de "O Rei Leão" da Disney, pois onde aquele era beleza e alegria, este, analisado com mais pormenor, mostra animais decrépitos, decadentes, maltratados, desiludidos com a sua situação e com a vida, em imagens que podem até tornar-se chocantes, como quando uma girafa é brutalmente decepada por uma bomba ou quando os leões são selvaticamente (?!) metralhados.

A reter
- O argumento com conta, peso e medida de Brian Vaughan, que expondo uma opinião foge ao to panfletário e deixa espaço para o leitor formar a sua opinião.
- O desenho magnífico de Niko Henrichon.
- A boa edição portuguesa da BdMania.

(Versão revista e actualizada do texto publicado a 31 de Maio de 2008 no suplemento In’ da revista NS, publicada aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)
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