Sem expectativas
Uma das coisas que mais aprecio - enquanto leitor - é ser
surpreendido por obras sobre as quais não tinha expectativas.
Isso aconteceu - mais uma vez, embora seja cada vez mais
raro, num tempo em que a informação circula velozmente e nos chega mesmo sem
queremos - com este primeiro volume de O
Legado de Júpiter.
Sejamos desde já claros: trata-se de uma obra-prima,
daquelas que daqui a 10, 20, 50 anos ainda será citada, lembrada e relida? Penso
que não. Tem uma temática tão profunda que nos deixa a pensar e nos acompanha
ao longo de dias? Não, também.
O que tem então de especial (mais) esta obra de Mark Millar?
A resposta é simples, atingi-lo muito difícil: O Legado de Júpiter é uma obra muito bem escrita - e também muito bem
desenhada. Que mais se pode pedir a uma BD?
Na sua essência é uma história de super-heróis - não, não
desistam já, leiam mais um pouco… - daqueles que fazem o bem e combatem vilões
apenas porque sim, porque receberam - o livro diz-nos como - poderes e
decidiram utilizá-los para o bem da Humanidade, desde os conturbados anos 30
que após a queda da Bolsa transformaram a América - e possivelmente permitiram
fazer dela o que é hoje.
Mas não é nessa primeira geração que a história de Millar se
centra, embora também a explore. Partindo dela - da imagem que sobre si
próprios criaram e projectaram Utopian e a sua esposa - o argumentista escocês
desconstrói a partir do interior o conceito tradicional das narrativas de
super-heróis - e o próprio conceito de super-seres - e coloca em questão tudo o
que são e representam.
Porque - e escrevo sem querer adiantar demasiado da história
mas levantando um pouco o véu sobre ela - aquela bela imagem projectada para o
exterior, para a sociedade que servem, esconde (mais uma) família disfuncional,
com uns patriarcas não tão ‘puros’ e ‘intocáveis’ e uma geração seguinte
desejosa de sair da sua sombra e seguir o seu próprio caminho, seja ele apenas
uma vida normal ou o aproveitamento egoísta das capacidades que herdaram.
Desta forma, O Legado
de Júpiter, em paralelo com a tal história de super-heróis - onde, num
registo puro e duro, ainda é possível inovar e ser original! - é também uma saga
familiar - com tudo o que tradicionalmente possamos imaginar e o ‘extra’ das
capacidades extraordinárias - centrada na luta pelo poder e no confronto de
gerações.
A extensão do tempo da acção desde os anos 30 até um futuro
distópico, em lugar de dispersar a atenção, como por vezes acontece, contribui
para o adensar da trama e para a tornar mais coerente e diversificada. Tudo,
como acima escrevi, muito bem escrito, de forma consistente, de forma surpreendente
e de forma estimulante, com Millar a encontrar, uma e outra vez, caminhos - inesperados
ou expectáveis - que vão dando corpo e estruturando um universo novo, sobre o
qual queremos saber mais e mais.
Se a narrativa seria igualmente boa em qualquer registo que
se possa considerar - e podemos imaginá-la com outros aspectoa em função das várias capas variantes incluídas nos extras da edição - Franq Quitely mostra-se a escolha ideal e
eleva-a ainda mais com um registo - que há uns anos eu talvez classificasse
como ‘mais europeu que americano’ - baseado num traço fino e elegante, muito
realista e servido por belíssimas cores, cujos tons vão variando em função das exigências
do relato e que o formato deluxe da
G. Floy intensifica. Sem pôr de lado a importância dos cenários - tão pormenorizados
ou despojados quanto é necessário - Quitely centra a força narrativa do seu
desenho nas personagens - nos grandes planos, na força das expressões faciais ou
na expressividade da postura corporal - num exercício gráfico que é bem mais
complicado do que parece, mas cujos resultados práticos estão bem à vista do
leitor.
Único senão nisto tudo - ironicamente, claro - é que se
parti para este primeiro tomo de O Legado
de Júpiter (praticamente) sem expectativas, elas estarão num patamar (muito)
elevado quando, previsivelmente ainda antes - só? - do Verão, abrir o segundo
tomo…
O Legado de Júpiter
Livro Um: Luta de poderes
Mark Millar (argumento)
Franq Quitely (desenho)
Peter Doherty (cor, design)
G. Floy
Portugal, Janeiro de 2018
168 x 260 mm, 136 p., cor, capa dura
14,00 €
(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as
aproveitar em toda a sua extensão)
Estive a ler a wikipedia e não fiquei a saber o que queria.
ResponderEliminarIsto termina no volume 2 ou a coisa fica completamente aberta para continuar "indefenidamente"?
Neste momento já saiu o segundo volume da série, mas não está definido ainda quantos volumes serão no total. Até agora, estava planeado para um volume por ano, mas esteve longe dessa regularidade, mas com a compra da Millarworld pela Netflix acredita-se que haverá mais meios para "regularizar" os prazos de lançamento.
EliminarExiste também uma série paralela, de que já saíram também dois volumes - Jupiter's Circle - que conta as histórias das personagens da primeira geração nos anos 50 e 60. Planeamos lançar o primeiro volume dessa série no final do ano.
Obrigado JoseFreitas. É sempre bom quando os editores respondem a questões, mais a mais num local não oficial como é o blog do Pedro Mouta.
EliminarPedro Mouta?!?
EliminarQueres ver que me compraram o blog e eu não sabia...
Boas leituras, mas com melhorias no que diz respeito aos nomes!
sorry :-(
EliminarAguçou minha curiosidade para ler!
ResponderEliminar"não, não desistam já, leiam mais um pouco"
ResponderEliminarLamento Pedro, parei mesmo aí.