10/08/2018

Cicatriz

Marcas da vida



Depois de Jardim Dos Espectros - e de outros títulos recentes de autores portugueses - eis uma nova surpresa aos quadradinhos. Sofia Neto, na sua primeira obra longa, surpreende pela forma como explora um tom mais intimista - que de alguma forma lhe era expectável - combinado com um registo de antecipação. E como diz tanto ou (aparentemente) tão pouco.
[Não consegui ‘ler’ este Cicatriz sem desvendar demasiado do enredo; prossigam por vossa conta e risco.]
Sabemos muito pouco sobre o futuro apresentado e sobre o local em que a ação decorre, mesmo após a leitura da obra. Podemos imaginar um cenário português - pelos nomes dos intervenientes - e um futuro pós-apocalíptico - embora desconhecendo os seus contornos. Só nos é revelado que existe uma cidade, onde as pessoas são mantidas (mais ou menos) à força, sob a imagem de uma aura de felicidade e sorte indefinidas, e que existem sobreviventes, no exterior, que reaprendem a viver em harmonia com a natureza, embora sempre sob a ameaça dos animais selvagens que nela vivem, dos quais o mais perigoso é (sempre) o homem. Entre eles, há os que se sentem confortáveis com a nova vida e os que desejam voltar à cidade, atraídos por imagens esparsas de passados melhores.
Diana, a protagonista, saiu da cidade à procura de Salomé, uma exploradora desaparecida. Entre elas existe uma relação de cumplicidade - ou algo mais - embora seja muito o que as separa agora - ou apenas o olhar mais alargada sobre a realidade e uma nova percepção que as duas processam de forma diferente.
A busca, de descoberta e iniciação, leva-a a cruzar-se com diferentes pequenas comunidades, isoladas, divididas. O clima reinante é de medo, receio do próximo e do desconhecido, sobrevivência a todo o custo, de aplicação da lei do mais forte. Rumores, boatos, relatos dispersos, contraditórios - dentro e fora da cidade - espalham a esperança quase da mesma forma que a destroem.
Não vou contar mais de Cicatriz - já ficou escrito demasiado - mas estas linhas ajudaram(-me) a perceber - e ordenar? - o muito que Sofia Neto nos disse em apenas 60 pranchas de banda desenhada. Melhor, o muito que nos deixou intuir - na prática ela diz-nos mesmo muito pouco - através de um relato impreciso e muito aberto, sobre equilíbrios, relações e sobrevivência que, se pode ser lido apenas por si só, poderá vir a fazer mais sentido se for integrado num todo maior - entenda-se outros livros no mesmo registo - que nos revele outras ‘cicatrizes’, outras marcas que a vida - ou alguém por ela - deixa (profundamente) em nós.

Como escrevi ontem acerca de Jardim dos Espectros, de Fabio Veras, também Sofia Neto - e os leitores - teria(m) ganho se tivesse havido um verdadeiro trabalho de edição em Cicatriz. Na adequação da (excessiva?) simplicidade gráfica e numa maior definição das personagens, cujas semelhanças obriga, por vezes, a voltar atrás, para nos assegurarmos de quem vemos.
Como em Jardim dos Espectros, estes são aspectos menores no conjunto de uma leitura que se recomenda, mas que poderiam ter elevado a obra a um outro nível.

Cicatriz
Sofia Neto
Polvo
Portugal, Junho de 2018
175 x 245 mm, 64 p., pb, capa dura
10,90 €

(clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)

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