09/08/2018

Jardim dos Espectros

Maturidade






Os anos recentes têm trazido muitas surpresas aos leitores de BD. Jardim dos Espectros é mais uma, em português.
É uma surpresa pela qualidade do traço - a que me parece que a edição não faz completa justiça - e pela planificação variada que consegue transmitir dinamismo e ritmo a uma narrativa com muito de declamativo.
É uma surpresa, igualmente, pelo tom profundo que assume, numa divagação - que se adivinha (em parte?) sentida - sobre a morte, a culpa, a fuga, o medo, a contrição e a busca de perdão. Uma narrativa centrada num homem velho que, após muitos anos, regressa ao local de uma tragédia, acossado pela culpa e pelo desejo de libertação. Vai embrenhar-se num estranho jardim - aparentemente habitado pelas almas daqueles que morreram atormentados - e ter encontros que o ajudarão - ou não - a (re)encontrar o seu rumo.
De forma pausada, demoradamente, Fábio Veras vai conduzir-nos por um cenário irreal - como irreais são as personagens que o habitam - e dar-nos a compreender aos poucos o drama interior do protagonista.
Fábio Veras que - e este é o último factor da surpresa - conta apenas 21 anos e nos oferece um relato tão denso, contido e emocional, que revela uma grande maturidade, a confirmar em futuras obras.

Editor, procura-se
Por isso, também, este livro merecia ter tido um trabalho de edição que não houve.
Nos países em que a banda desenhada tem fortes raízes, o editor é a pessoa fundamental no desenvolvimento de qualquer obra. É ele que selecciona ou propõe, orienta os autores, define prazos, aconselha/impõe alterações, rejeita, acompanha a produção final e a sua colocação no mercado.
Em Portugal - possivelmente devido à parca produção nacional - é uma figura quase ausente. Mas que faz falta. [a excepção - única? - será Mário Freitas, na (sua) Kingpin Books.]
Fábio Veras teria ganho se alguém o tivesse aconselhado a dar maior uniformidade ao texto escrito, se lhe tivessem dado algumas indicações quanto à sua fluidez, se lhe tivessem dito para cuidar graficamente das últimas páginas como cuidou do resto do livro, se tivesse havido um outro trabalho de impressão…
Isto não retira valor, interesse e qualidade à obra, não é minimamente razão para deixar de aconselhar uma leitura atenta de Jardim dos Espectros. Mas faz pensar que poderia ter atingido um outro patamar...

Jardim dos Espectros
Fábio Veras
Escorpião Azul
Portugal, Maio de 2018
155 x 230 mm, 64 p., pb, capa mole com badanas
11,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

5 comentários:

  1. Bom traço sem dúvida, a proliferação de BD, parece que também levanta novos valores que em outros tempos talvez não saíssem do anonimato, uma promessa (aqui já confirmada) de um talento nacional

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  4. Essa é uma questão muito importante, e o comentário do Fernando Dórdio muito interesssante. De facto ter um editor a dar o que podem parecer num dado momento "lições" (de português, de narrativa, de...) pode ser cansativo, mesmo que o objetivos último seja uma obra melhor. Isto porque o que para um é "estilo" para outro é "problema".
    Mas acho o trabalho de edição fundamental, e tive exatamente a mesma opinião do Pedro Cleto ao ler este livro. E, na verdade, muitos da Escorpião Azul, sem desmerecer a voz que dá aos autores naquilo que seria, noutros tempos, o papel de fanzines.

    Mas há também aqui uma questão cultural a ter em conta. O mesmo não é (tão) verdade no universo anglófono, por exemplo, e não é só nas "Artes". Sendo biólogo de formação já tive, quer textos científicos, quer de ficção, corrigidos (e por vezes drasticamente mudados) por editores que, ou nem me pediram licença, ou disseram que não publicavam se não fizesse as alterações. Confesso que há alturas em que me custa mais do que outras, mas faz parte do processo.
    E, claro, para além da disponibilidade/personalidade de cada um, pode também depender de fatores como a idade, um jovem autor a começar pode achar ter mais a ganhar com este processo de quase "mentoring", por exemplo. Nalguns casos penso que seria útil, mas mais importante é as obras sairem, e os autores terem condições para evoluir.

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  5. Como editor, diria que a minha atitude é a de sempre que possível ser o menos interventivo possível, e reservar o grosso da minha "edição" para os textos. isto porque é notório que os pedidos de mudanças de desenho, redesenhar vinhetas, omitir coisas, tendem a ser menos bem-vindos do que os de texto. Por várias razões, desde questões de timings e calendários e lançamentos, até àquela que me parece ser a questão mais importante todas, que eu definiria como sendo "mas por que raio me vou estar a chatear a fazer mudanças a uma coisa minha por 300€ de adiantamentos?", que é uma questão que eu entendo perfeitamente.

    Mesmo no melhor dos cenários, o de um livro vender, p.ex. 1500 exemplares em 2 ou 3 anos (que é o máximo "normal" que um álbum pode ter em portugal na maioria dos casos), quanto é que o(s) autore(s) vão receber? 1500€? 2000€? 2500€? Isso remunera meses de trabalho?

    O que nós temos que distinguir mesmo é duas categorias de edição de livros de autores portugueses: o do livro que nos vem ter às mãos mais ou menos completo, e sobre o qual é difícil fazer demasiadas intervenções (porque muitas vezes o autor pode pura e simplesmente desistir, ou levar o livro para outra editora), e o do projecto que é originado pelo editor, que junta o argumentista e o artista e vai acompanhando o processo de criação do livro e fazendo sugestões à medida. O segundo caso tende a ser bastante raro no nosso mercado, e muitos desses projectos acabam em nada,

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