08/04/2022

Na prisão

Uma outra forma de ser




Quando falamos em narrativas de prisão, naturalmente vêm de imediato à mente duas temáticas - muitas vezes complementares: as grandes fugas, por um lado, ou as histórias hiper-violentas sobre a dura realidade quotidiana de quem está preso, sujeito à prepotência dos guardas ou à opressão dos gangs.
Mas esqueçam-nas quando pegarem neste livro. Obra autobiográfica de Kazuichi Hanawa, é quase um documentário sobre a vida na prisão japonesa onde o autor cumpriu pena por posse de réplicas de armas não autorizadas.

Uma primeira referência para a edição. O seu formato é um pouco maior que os volumes de manga a que estamos habituados - na verdade, corresponde ao do Death Note Black Edition - o que, podendo parecer que não, proporciona uma maior mancha gráfica, logo uma melhor leitura do traço realista pormenorizado de Hanawa.

Para além disso, o livro abre com uma entrevista ao autor - o que contextualiza a situação - e fecha com um comentário crítico de Kure Tomofussa à própria obra e um extenso glossário. Em relação a este último, se é verdade que Na prisão se lê bem mesmo não sabendo o que designam muitas das designações gastronómicas ou não (re)conhecendo (algum)as (das) referências, a possibilidade de saber realmente o que menciona o autor confere uma outra profundidade. Um conselho: façam a leitura directa da narrativa, sem recorrerem ao glossário, o que é sempre penalizador para o ritmo de leitura, e consultem-no só no final. Vão beneficiar duplamente.

Mas passemos então a Na prisão propriamente dita. Datada de 1994, não sofreu com a passagem do tempo, mantém um bom ritmo narrativo - o que não é sinónimo de leitura rápida, ao contrário do que tantas vezes associamos ao manga - e uma boa capacidade de comunicação com o leitor.

Para o abordar, há que ter em mente que vamos mergulhar numa outra realidade, a de um povo de características próprias, a mais relevante das quais a forma muito peculiar de pensar e viver. Reflexo disso, é a forma como Hanawa enfrenta a sua pena de prisão - não como um castigo mas como forma de pagar a sua dívida à sociedade e, de certa maneira, como forma de reabilitação - ou pelo menos de ensinamento para abandonar o que o levou lá.

É nesta perspectiva que deve ser lido Na prisão, um conjunto de relatos curtos sobre o quotidiano, as regras, os hábitos, as funções, as obrigações, os deveres e os direitos dos presos. Relatos curiosos, num registo de realismo cru que aqui e ali pode incomodar pela sinceridade revelada ou o que é mostrado, que focam desde a obrigação de varrer diariamente a cela, as compras que podem ser feitas, as posses a que os presos têm direito, a (boa) alimentação que lhes é servida, as características da roupa que podem ou não usar, a forma de dobrar o pijama e uma série de outras especificidades que, ao leitor ocidental que sou, soaram quase como um comportamento obsessivo-compulsivo...

...mas que mais não são do que reflexos de uma outra forma de ser - e de pensar.


Na prisão
Kazuichi Hanawa
Sendai Editora
Portugal, Março de 2022
148 x 210 mm, 256 p., pb, capa cartão
10,90

(imagens disponibilizadas pela Sendai Editora; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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