12/09/2023

Uma estrela de algodão preto

Nos lugares do fundo do autocarro


Primeiro grande livro de BD do pós-férias, Uma estrela de algodão preto tem como temática central o racismo profundamente enraizado nos Estados Unidos, não desde tempos imemoriais, como quase escrevi, mas desde a sua fundação enquanto nação, o que paradoxalmente implica maior longevidade…: é desde sempre.

Infelizmente, esta temática que não deixa ninguém indiferente, ganha recorrentemente nova actualidade à luz de sucessivos acontecimentos recentes que vão tendo lugar naquele país - mas desenganem-se os que queiram ver esta questão como exclusiva dos EUA...

Apesar disso, esta obra pode ser encarada sob dois outros registos: o histórico (ficcional) e o relato de guerra, mais do ponto de vista humano do que heróico.

Na realidade, Uma estrela de algodão preto acompanha um comando de soldados negros, em França, durante a II Guerra Mundial, com uma missão surpreendente: recuperar a primeira bandeira dos Estados Unidos, utilizada durante a Declaração da Independência de 1776. Antes de chegarem a esse momento, Yves Sente e Steve Cuzor fazem um longo preâmbulo para nos mostrarem qual o lugar e como eram tratados os soldados negros no exército norte-americano: tal e qual como na maioria dos Estados Unidos, ocupavam os ‘lugares do fundo do autocarro’, para utilizar uma frase bem expressiva de um deles…

Se a História em Uma estrela de algodão preto, passa também por aqui, ela tem início muito antes, quando nos narra os primeiros passos, quase dois séculos antes, daquela que viria a ser uma das nações mais poderosas do mundo e porta-estandarte de ideais como liberdade e justiça… pelo menos para os que ostentam a cor da pele correcta.

Voltando ao comando negro do relato, para lá do simbolismos óbvio da missão concedida exactamente a eles, os três homens envolvidos na recuperação da bandeira original em território francês, ainda ocupados pelos nazis, têm um motivo extra: descobrir se realmente na bandeira, na altura apenas com 13 estrelas, tinha por detrás de uma delas uma estrela preta, colocada por uma costureira negra.

A narrativa é tensa, as atitudes depreciativas dos soldados e oficiais brancos em relação aos negros multiplicam-se e Yves Sente arrasta conscientemente o progresso da acção para acentuar o clima tenso e opressivo que perpassa por todas as páginas, reforçado pelo traço realista e rico de contrastes de Steve Cuzor e pela contida paleta de cores utilizada. Apesar disso, dos momentos de ilusão e de reconhecimento ou afirmação do valor dos negros, independentemente do sucesso ou não da sua missão, que deixo aos leitores descobrirem, a mensagem que permanece é a mesmo que ecoa ainda nos nossos dias: por mais que as estrelas negras brilhem, o seu presente pouco importa e pouco difere do seu passado...


Nota final

Se, como é apanágio da Ala dos Livros, esta é (mais) uma belíssima edição, as ilustrações de Cuzor a preto e branco, mostradas nos extras no final (e de que deixo um exemplo aqui ao lado), deixaram-me a imaginar como seria o relato todo com esta técnica... e a lamentar - mesmo compreendendo - não ter sido essa a opção da editora.


Uma estrela de algodão preto
Yves Sente (argumento)
Steve Cuzor (desenho)
Ala dos Livros
Portugal, Agosto de 2023
235 x 310 mm, 192 p., cor, capa dura
35,00€

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online a 1 de Setembro de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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