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24/05/2023

Auto da Barca do Inferno

À barca, à barca, hu-u!’



Último volume (cronológico, que não de lançamento, pois o tomo #29 Os Desastres de Sofia só será distribuído no final do mês) da segunda série da colecção Clássicos da Literatura em BD, este Auto da Barca do Inferno é, também, a terceira adaptação de uma obra literária portuguesa no seu âmbito, facto que nunca é demais realçar, pelo que significa de aposta por parte da Levoir.

10/01/2012

Auto da Barca do Inferno






Gil Vicente (texto original)
Laudo Ferreira (desenho)
Omar Viñole (cor)
Colecção Clássicos em HQ
Editora Peirópolis (Brasil, Agosto de 2011)
200 x 270 mm, 56 p., cor, brochado com badanas
R$ 35,00


1.       Confesso que não sou fã da utilização do texto integral de uma obra original numa adaptação em banda desenhada.
2.      Ou em qualquer outro meio, refira-se.
3.      Porque literatura, teatro, cinema ou banda desenhada são géneros narrativos díspares, com regras e códigos próprios – apesar de alguns pontos de contacto.
4.      Por isso, a transposição do texto integral de uma obra em qualquer daqueles géneros para outro, implica sempre a quebras das tais regras e códigos, provocando – no mínimo – estranheza e prejudicando a sua legibilidade.
5.      No caso do álbum presente, a situação agrava-se pois estamos a falar de um texto – magnífico! - com cerca de 5o0 anos, com todas as diferenças de significado e de grafia que facilmente se imaginam.
6.      Não quero com isto dizer que não entendo o conceito – que até pode ser louvável – que preside a esta opção: chamar a atenção dos leitores actuais para obras clássicas.
7.      Mas, mesmo tendo isso em conta, não me parece que a opção tomada seja a mais indicada. Passo a explicar porquê:
8.     Primeiro, porque o esforço a que obriga a leitura do português antigo, facilmente desencorajará o leitor de hoje. O ganho seria evidente, se a linguagem fosse actualizada e adaptada ao género narrativo escolhido, respeitando o espírito e os princípios do magnífico original de Gil Vcente.
9.      Depois, porque se um leitor comum tiver o desejo de descobrir o original videntino, dificilmente o procurará numa edição aos quadradinhos.
10.  Feito este preâmbulo, que já vai demasiado longo, passemos então à obra em si, a meu ver demasiado penalizada pela opção editorial de base, uma vez que, graficamente, Laudo Ferreira desenvolveu um trabalho que (quase) só merece elogios.
11.   Desde logo pela dinâmica e pela cadência de leitura impostas que – a espaços – conseguem contrariar as limitações de ritmo provocadas pelo português arcaico.
12.  Assente na expressividade física e gráfica das personagens, na planificação diversificada e no bom trabalho de cor de Omar Viñole.
13.  Também - e muito - porque o seu estilo caricatural se adequa às mil maravilhas ao tom mordaz e crítico do original de Gil Vicente, acentuando as características, qualidades e defeitos de cada uma das personagens-tipo – fidalgo, onzeneiro, parvo, sapateiro, padre, Brísida Vaz, judeu, etc. - falecidas que buscam a barca que as conduzirá ao paraíso (ou, na maior parte dos casos) ao inferno.
14.  Na verdade, vale a pena perder – ganhar, sem dúvida – algum tempo a apreciar com mais pormenor cada uma das personagens, com especial destaque para o barqueiro diabólico.
15.   Veja-se o seu olhar trocista e malévolo, o ar com que contesta as razões daqueles que recusam entrar na sua barca, a sua figura imponente, distinta e enganadoramente acolhedora, o ar triunfal após cada embarque no seu navio…
16.  O que no seu conjunto faz dele – bem como de muitos dos outros - uma personagem extremamente conseguida e que encarna na perfeição – acredito eu – o que o mestre português tinha em mente quando escreveu a sua peça teatral.
17.   E esse é outro trunfo desta adaptação, a forma como Laudo Ferreira conseguiu “encenar” no palco que são os quadradinhos da sua história, o texto teatral vicentino…
18.  … conferindo à BD um invulgar mas estimulante tom teatral – no excesso dos gestos, na pose declamatória tantas vezes assumida, na importância dada às expressões, na sua divisão em “actos”...
19.  Por isso, apesar do texto integral original, confesso que foi um prazer recordar desta forma o “Auto da Barca do Inferno”, embora reste a sensação de que, tendo sido outra a opção, esta adaptação poderia ter-se tornado uma obra de referência…
20.  Por isso, acredito que o aplauso à obra expresso por Gil Vicente, no final da “peça encenada” a que assiste ao lado de Laudo Ferreira, tem toda a justificação e teria certamente lugar se ele a tivesse podido ler, assim existissem já histórias aos quadradinhos quando escreveu a sua peça.
21.  A finalizar, fica a estranheza pelo facto de, num tempo em que (supostamente) existe um Acordo Ortográfico que (supostamente) serve para uniformizar a escrita entre os países lusófonos, uma obra baseada num clássico da literatura portuguesa, apoiada pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas portuguesa e pelo Ministério da Cultura português, não esteja disponível em Portugal…
22. (A exemplo do que acontece, a outro nível, com outros contornos, com  a ausência, no Brasil, das edições portuguesas de BD (da ASA) do grupo Leya, e na ausência, em Portugal, das edições de BD da filial brasileira da Leya…)


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