Depois de inaugurar uma exposição de originais, ainda
patente em Beja até 28 de Fevereiro, em trânsito para o Festival de BD de Angoulême que ontem
terminou, André Diniz esteve de passagem pelo Porto.
Por isso, aproveitei para conversar com o criador de “Morro
da Favela”, tendo como pretexto o lançamento, esta semana, do livro em Portugal,
pela Polvo – obrigado Rui Brito pela informação - ficando a conhecer um pouco
melhor um dos autores brasileiros de BD (ou HQ!) mais interessantes do momento.
As
Leituras do Pedro – Quem é o André Diniz Fernandes?
André
Diniz – Nasci no Brasil a 5 de Setembro de 1975 e faço quadrinhos
desde antes de saber ler.
Comecei por editar fanzines, fotocopiados, ainda antes de
haver Internet (!) e, no ano 2000, criei a Nona Arte, uma editora de uma pessoa
só, lançando dois títulos: “Subversivos – Companheiro Germano”, desenhado pelo
Laudo Ferreira, e “Fawcet”, com arte de Flávio Colin. Este último foi marcante,
não só pela colaboração com o mestre Colin, mas também porque teve uma boa
receptividade e conquistou vários prémios.
Nestes dois livros apenas escrevi os argumentos. Sabia
desenhar um pouco, já tinha feito algumas bandas desenhadas, mas sentia que
para fazer algo a sério tinha que entregar o desenho a outros autores.
Depois, criei um site cuja intenção era divulgar os meus
trabalhos, comecei a incluir obras de outros autores, esgotadas ou de pouca
circulação e quando parei, já tinha mais de 450 obras aos quadradinhos.
Com outras obras que fui editando, quando o mercado
brasileiro despertou para os quadradinhos, o meu trabalho já era conhecido. Em
2005, quando saiu o meu primeiro livro por um editor “de verdade”, já tinha
ganho 12 prémios!
Desde então não editei mais nada sozinho e não sinto nenhuns
remorsos!
ALP –
“Morro da Favela” é a biografia do fotógrafo Maurício Hora. Como surgiu esta
ideia?
AD – Tudo
começou durante um almoço em casa da minha mãe, onde comentei que havia muita
gente com vidas interessantes que ninguém conhecia e que gostava de fazer a
biografia de alguém assim.
Um cunhado meu disse que conhecia o Maurício Hora, fez um
apanhado do percurso dele e fiquei bastante curioso. Telefonei-lhe,
apresentei-me e disse-lhe de imediato, pelo telefone, que gostava de contar a
vida dele em BD. Fez-se um silêncio… e ele aceitou.
A partir daí, encontramo-nos várias vezes. No Rio de
Janeiro, em qualquer sítio há uma favela, vê-se uma favela, mas quase ninguém
as conhece de verdade. O Maurício levou-me à “sua” favela – Morro da
Providência – várias vezes e descobri coisas boas e coisas más.
A primeira grande surpresa foi ver na favela tantas pessoas
armadas como geralmente se vêem pessoas ao telemóvel. Mas, ao mesmo tempo,
também descobri que a favela é quase como uma grande família! Claro que nas
famílias, às vezes um cunhado mata outro (risos)!
Hoje, entendo perfeitamente que alguém diga que habita numa
favela e não quer sair de lá. O Maurício tem uma visão única. A visão de alguém
de dentro, mas também a de quem está fora da favela.
Quando escolhi a favela como cenário, não queria que fosse
mais uma história de violência, embora soubesse que era impossível eliminá-la
completamente…
ALP –
Que aspectos o marcaram mais durante a criação de “Morro da Favela”?
AD – Houve
muitos. Um dos que mais me marcou, foi quando percebi que ia narrar
algo que ninguém poderia imaginar em ficção, quando o Maurício me contou o
episódio em que teve de ensinar fotografia a 50 pessoas que não tinham máquinas
fotográficas e saiu com elas pela favela, a fazerem enquadramentos com os dedos
(forma um rectângulo com os polegares e os indicadores para exemplificar).
Ninguém se lembrava de algo assim!
Também me tocou o episódio das visitas que fazia ao pai
quando era criança. Comecei logo a imaginar uma cena terrível, numa prisão suja
e degrada, com homens mal-encarados e afinal aquelas eram as melhores
recordações de infância do Maurício. Ia ver o pai, havia muitas famílias a
fazer visitas, brincava com as outras crianças, havia bolos, doces, coisas
boas… Era uma verdadeira festa!
Muita da capacidade de emocionar que o livro tem deve-se ao
Maurício.
Cresci muito como pessoa a fazer este livro.
ALP –
Qual foi a reacção do Maurício Hora à obra pronta?
AD – Ele só
quis ver no fim, mas tínhamos um acordo: o que ele não quisesse eu tirava. Na
verdade, pouco foi alterado: uma página de que ele não gostou e uma ou outra
fala…
Quando terminei entreguei-lhe o livro e fiquei à espera dos
comentários. O tempo começou a passar, o editor queria o livro para mandar para
a gráfica e nada. Pensei: não gostou. Ganhei coragem e falei com ele. Disse-me
que não conseguia ler ais de 2 ou 3 páginas sem desatar a chorar, por sentir
que tudo era tão fiel ao que ele tinha vivido.
ALP – O
facto de desenhar em “negativo” foi uma opção por se tratar da biografia de um
fotógrafo ou foi apenas uma questão estética?
AD – A
partir de 2008, comecei a desenhar também. Esqueci tudo o que tinha feito para
trás e tentei descobrir qual seria o meu estilo, o traço que mais se adequava
ao que eu queria contar.
Tenho a mão muito pesada, parte bicos com facilidade, sinto uma
certa dificuldade em trabalhar linhas curvas, delicadas… Procurei influências
que me servissem: arte africana, cubismo… Demorei seis meses neste processo,
algo bem obsessivo… Foi algo marcante que em grande parte definiu o que hoje.
Agora, no cartão de visita, até já escrevo “ilustrador”. E até já fiz trabalhos
de ilustração.
Passando ao “Morro da Favela”, como no fim do livro iam ser
incluídas fotografias do Marcelo Hara, não quis retratar a favela com um traço
rigoroso e realista. Aliás, desenhar uma favela é óptimo para quem não sabe
perspectiva. Há edifícios inclinados para um lado, outros para o outro…
Para mostrar o lado rústico, rude daquele local, precisava
de um traço assim, anguloso. A questão do “negativo” acabou por surgir durante
as pesquisas que fiz, naturalmente, e depois de experimentar algumas páginas
optei por ele.
ALP –
Já tem o distanciamento necessário para olhar para o Morro da Favela de modo
crítico? O que mudaria nele?
AD – Ainda
não! Para já não mudaria nada! Mas se daqui a cinco anos continuar a achar o
mesmo, haverá algo de errado, quererá dizer que não evoluí nada!
ALP –
Depois das edições inglesa e francesa, segue-se a portuguesa. Houve algumas
mudanças em relação ao original brasileiro?
AD - O texto
é o mesmo, as únicas alterações são a capa, que é nova, e a inclusão de
ilustrações que pedi a alguns amigos brasileiros: os gémeos Marcelo e Magno
Costa, José Aguiar, Laudo Ferreira, Pablo Mayer, Ricardo Manhães e Will.
Editar em Portugal é muito importante para mim. Estou muito
feliz, sinto-me como um fã da Marvel ou da DC Comics que consegue publicar nos
Estados Unidos. Quando comecei a interessa-mer mais por quadradinhos li muitas
edições portuguesas: a revista “Selecções BD”, álbuns da Meribérica, Astérix,
Lucky Luke… que era preciso desencantar nos sebos, a bom preço… Também li
revistas portuguesas como a “Grande Reportagem”, que me deslumbrava, pois na
época não havia nada semelhante no Brasil.
ALP – Como
estão os quadradinhos no Brasil?
AD – Eu
estou a viver coisas que nunca imaginei possível!
Há mudanças no Brasil que acredito que vieram para ficar: a
forma de ver os quadradinhos, a atenção da comunicação social, a existência de
uma secção de BD em quase tidas as livrarias…
Há editoras só de quadradinhos, há grandes editoras com
selos de quadradinhos… Mesmo editoras que nunca publicaram BD, estão abertas a
propostas de quadradinhos que se ajustem à sua linha editorial.
Por outro lado, nos últimos anos o governo federal passou a
incluir nas listas de livros a distribuir pelas bibliotecas, livros de
quadradinhos. Para editores e autores isso é muito bom. Um livro seleccionado
garante uma tiragem de 15 a 30 mil exemplares, o que é muito bom!
"Claro que nas famílias, às vezes um cunhado mata outro (risos)!" -- eu ri..rsrs..
ResponderEliminar"Quando escolhi a favela como cenário, não queria que fosse mais uma história de violência, embora soubesse que era impossível eliminá-la completamente…" -- Hummm... Graças a Deus! Chega de produções brasileiras cujo único cunho é impressioanr os outros só mostrando o que de pior há nas favelas.
Parabéns! vou divulgar por aí!
ResponderEliminarOlá Fabiano,
EliminarSim, o André conseguiu traçar um retrato bem humano das favelas que geralmente associamos apenas ao pior da nossa sociedade.
E obrigado pela divulgação!
Boas leituras!
Pedro, que linda entrevista com o André... Eu o conheço desde a época do site Nona Arte (ele criou uma revista virtual com minhas BDs avulsas, cerca de 120 páginas, creio) e fez enorme sucesso a epoca. Acompanhei suas pesquisas artísticas, as mudanças de estilo e me espantou o amadurecimento rápido do gajo! Parabéns e muito sucesso a ambos!
ResponderEliminarOlá Bira,
EliminarEu já tinha vista algumas coisas do André online e histórias curtas na Café Espacial, mas o Morro da Favela é qualquer coisa de muito bom...
Boas leituras!