12/02/2014

Ardalén










Quem somos nós?
O que pensamos que somos? O que os outros pensam que somos? Aquilo que os outros lembram de nós?
Em Ardalén, sem responder aquelas perguntas, Miguelanxo Prado aponta pistas, levanta hipóteses, sugere para lá do palpável, numa obra notável sobre a memória e o seu funcionamento, que urge descobrir (já a seguir).


Terceiro movimento da sua sinfonia marítima – que passa também por Traço de Giz e De ProfundisArdalén – nome galego de um vento que sopra do mar [trazendo, para além do cheiro a maresia, imagens e memórias dessa imensidão salgada que nós, que habitamos junto a ele, temos necessidade de contemplar e sentir] – tal como os dois livros atrás referidos, combina de forma magistral o real, o onírico, o imaginário e o fantástico, com o oceano como pano de fundo e mote, numa combinação única – e diferente das anteriores.
Passeio pela memória, pelos seus mecanismos, pelas suas lacunas (e a forma de as preencher), por aquilo que elas mudam (conscientemente ou não), dourando ou exacerbando, começa com a chegada de Sabela a uma aldeia galega, pequena e isolada, em busca das origens do avô, Francisco Lamas, emigrante em Cuba, que nunca conheceu mas de que sempre ouviu falar na sua infância.
Acolhida com desconfiança por quase todos – com hostilidade palpável mesmo por um dos aldeões – como é timbre das comunidades isoladas, receosas de tudo que possa de alguma forma fazer oscilar os equilíbrios (quantas vezes instáveis) estabelecidos, Sabela vai conhecer o velho Fidel, também ele, como Francisco, antigo marinheiro e emigrante, afectado por uma doença degenerativa, mas de quem vai ouvir histórias e memórias, capazes de sossegar as suas dúvidas e trazer de novo alegria à vida dele.
Pelo menos, até fazer uma surpreendente descoberta relacionada com o velho, que põe em causa tudo o que ele contou - e desconcerta o leitor.
Dessa forma, aquilo que parecia um romance gráfico a um tempo evocativo de uma época (o que continua a ser) e retrato de uma realidade social dos dias de hoje (a desertificação das aldeias, as consequências do isolamento, a procura das origens) torna-se numa dissertação fantástica (triplamente fantástica, no tom, na forma e no conteúdo) pelos artifícios da memória, a consubstanciação de sonhos ou a transposição de vivências ou um pouco de tudo isto – como resultado da acção do Aradalén…?
Que Prado, com um traço personalizado e expressivo, assente num belíssimo trabalho de cor directa, de forma recatada, sensível e poética, transforma em mais uma obra-prima aos quadradinhos que urge descobrir (já escrevi no início, eu sei, mas acho útil reforçar) num tempo em que o assoberbado ritmo de vida (que nos impõem), quase sempre torna impossível parar, olhar o mar, sentir o vento e deixar as memórias – nossas e dos outros – fluírem, combinarem-se e originarem novas memórias para (re)viver e partilhar.

Ardalén
Miguelanxo Prado
ASA
Portugal, Dezembro de 2013
195 x 265 mm, 256 p., cor, cartonado
33,00 €

4 comentários:

  1. Um boa reflexão por uma excelente BD, de um artista no topo da sua arte. Os jogos de memória são especialmente deliciosos, em toda a obra. Recomenda-se vivamente, sem dúvida.

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    1. Obrigado, SAM.
      A tónica deve ser posta na excelência da obra. E aconselho a (re)leitura conjunta com Traço de Giz e De Profundis, com as quais está inegavelmente ligada.

      Boas leituras!

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  2. Boa tarde. 33 Euros é muito dinheiro! Mais 10 do que em Espanha. Talvez daqui a 5 anos, se a editora entretanto falir e começar a vender os livros em stock com 50% de desconto, eu arrisque a compra deste (aparentemente) magnífico livro. Obrigado pela atenção. Paulo Martins

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    Respostas
    1. Caro Paulo Martins,
      É muito dinheiro? Sim.
      É caro para a edição apresentada (256 páginas a cores, bom papel capa cartonada)? Penso que não.
      Vale o que custa? Eu acho que sim.
      Será possível dentro de alguns meses comprá-lo mais barato? Possivelmente sim e essa é uma das razões porque a edição de BD está tão mal no nosso país. O leitor sabe que passado pouco tempo pode comprar os livros com descontos significativos e prefere esperar que tal aconteça...

      Boas leituras... logo que possível!

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