Sangue a rodos
Livro de estreia da Sendai Editora, mais do que uma alternativa, Panorama do Inferno apresenta-se como um complemento às séries de manga que a Devir tem publicado entre nós. Os leitores do género vêem alargado o leque de escolhas e esta edição sobre um artista que pinta com o próprio sangue as suas visões do inferno pode ser também um piscar de olhos aos que ainda hesitam em mergulhar na banda desenhada de origem japonesa.
A Edição
Começo em termos formais.
Esta primeira edição da Sendai Editora é ligeiramente maior do que o formato a que a Devir nos habituou. A diferença, quase que ‘invisível a olho nu’, são na prática mais 4 mm de largura e 15 de altura, o que faz uma pequena diferença na leitura das 208 páginas que compõem o volume .
A capa, em cartão, é baça, sem brilho, mas o seu verso e o da contracapa foram aproveitados para duas ilustrações coloridas (como na origem devem ter sido as primeiras 8 páginas do livro, aqui reproduzidas em tons cinzentos). O papel tem um tom muito ligeiramente amarelado, é de gramagem regular e a impressão é boa e serve o estilo contrastado do autor, sem manchas nem borrões.
No final inclui um glossário de duas páginas, que contextualiza algumas situações reais mostradas e alguns termos utilizados, e uma biografia do autor.
De forma lógica, a editora optou por começar com uma obra completa num único volume, o que não implicando continuações - e todos sabemos quão longas costumam ser as séries de manga! - é uma aposta sem risco para quem se sentir tentado pela sua leitura.
Este tomo permite igualmente testar a apetência dos leitores por um género, o terror, um género que os manga cultivam de forma recorrente mas de que não havia até hoje qualquer livro editado entre nós.
O autor
Hideshi Hino nasceu em 1946 na Manchúria. Estreou-se como mangaka em 1967 na revista Com, passando um ano depois para a mais conhecida Boro.
Dividindo o seu tempo entre o manga e a realização, cultiva especialmente a temática de terror grotesco e Panorama do Inferno é um dos seus títulos mais conhecidos.
A obra
Já escrevi acima, esta é uma narrativa de terror. Mas o terror abordado numa óptica de grotesco, de provocação, de vontade de chocar. Por isso, pelo seu conteúdo, pelo que é mostrado explicitamente e pelo (muito) que fica implícito, não será uma obra para todos, não é de certeza para os leitores de estômago fraco.
O protagonista, de olhar perscrutador fixo em nós, é um pintor que utiliza o próprio sangue para nos dar as suas visões - os seus ‘panoramas’ - do que é o inferno. Não o mais tradicional inferno religioso, enquanto local futuro de castigo pelas (nossas) más acções, mas o inferno na terra, aquele que diariamente o autor vê ou viveu. E no qual - numa componente autobiográfica cuja dimensão não sei quantificar - o autor espelha algumas das experiências que ele - e/ou os seus familiares - viveram quando, após a II Guerra Mundial, a Manchúria foi invadida pelos soviéticos e os chineses retaliaram o que tinham sofrido dos japoneses durante o conflito, forçando a sua família a uma longa fuga traumática até ao Japão.
No entanto, a abordagem de Hino não passa por uma contextualização histórica profunda, mas sim pela citação do episódio como justificação para a violência e os abusos que o avô, o pai, a mãe e os irmãos do autor sofreram e exerceram ao longo da vida, sobre as suas esposas e filhos.
E se é esse inferno mais pessoal que o autor revela nas suas pinturas dantescas, existe também um outro inferno, literalmente visceral, baseado naquilo que rodeia a sua habitação [e cuidado que a partir daqui são feitas algumas revelações que podem tirar algum prazer - prazer!? - à leitura e provocar algum choque ou mesmo mal-estar]: uma guilhotina que diariamente decepa os condenados, soltando fogo-de-artifício a cada cabeça cortada; o rio tornado carmesim pelas cabeças que nele caem; o crematório onde os corpos sem cabeça se contorcem numa dança aterradora enquanto ardem ao longo de todo o dia; o cemitério onde os restos são enterrados e de onde os corpos decepados saem das sepulturas à noite.
E se o leitor pensa que o atrás descrito - e no livro explicitamente desenhado - já é suficientemente incómodo, então o que dizer da forma como o vermelho do sangue, as nuvens de cinzas e o fedor a carne queimada rodeiam e impregnam tudo à sua volta, inspirando o pintor tanto quanto afectam - e de que maneira! - a sua mulher e os seus filhos. Porque aquela serve no seu bar corpos sem cabeça que mutila para auto-alimentar e um dos filhos gosta de brincar no matadouro local e chupar olhos de porcos mortos…
Traçado assim o ‘panorama’ da obra, está explicada a razão porque muitos não passarão das primeiras páginas.
Os que o fizerem, poderão desfrutar com o ligeiro toque de humor profundamente sombrio, com o grotesco das situações, o tom constantemente provocador que exacerba o pior da imaginação (doentia) de cada leitor, mas também a vontade de chocar a todo o preço, com as situações violentas, cruas e incómodas a serem apresentadas num crescendo de horror grotesco, assentes num traço semi-caricatural, apoiado em fortes contrastes de branco e negro, sendo que na verdade o todo pode bem ser definido numa única palavra: sanguinário.
...embora ela encerre pouco do que este livro realmente é.
Panorama
do Inferno
Hideshi
Hino
Sendai
Editora
Portugal,
Julho
de
2021
130
x 205 mm,
208
p.,
pb,
capa cartão
9,90
€
(imagens disponibilizadas pela Sendai Editora; clicar neste link para descobrir outras pranchas ou nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Tanta coisa boa por apenas 9,90€?
ResponderEliminarSold!
É uma edição refrescante para desenjoar do manga típico.
Precisamos de mais manga underground do Japão e não sei porque nunca mais editam por cá o Crying Freeman do duo Koike/Ikegami.
Eu gostava de ver cá Deadman Wonderland manga já completo e curto
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