22/10/2024

O deus das moscas

A violência visceral inerente ao ser humano


No atual panorama editorial de banda desenhada europeia, com algumas ramificações noutras latitudes, há duas constatações inevitáveis. A primeira, o crescimento exponencial da adaptação de romances da literatura, de certa forma num regresso a uma prática que algumas décadas atrás tinha outras justificações. A segunda, umbilicalmente ligada à primeira, é a qualidade de muitas dessas versões que recriam de forma completa e memorável, numa nova linguagem, as histórias dos romances originais. O Deus das Moscas, assinado por Aimée de Jongh, que a ASA acaba de editar em simultâneo com a edição original, é um dos exemplos possíveis.

O ponto de partida do romance original de William Golding é conhecido: um avião despenha-se numa ilha deserta e só sobrevivem algumas dezenas de alunos de colégios britânicos.

Sozinhos, têm de aprender a sobreviver e de criar regras para viver em comunidade. O que até aí era dado como adquirido, como abrigo, alimento, protecção, consolo... passa a sair-lhes da pele, literalmente.

Logo à partida, distinguem-se dois adolescentes: Ralph e Jack. O primeiro, mais dado a consensos, o segundo talvez não por acaso, solista de um coro religioso, a preferir impor a sua opinião pela força.

Caçar animais, encontrar fruta, manter uma fogueira acesa para alertar eventuais navios ou aviões que passem, são tarefas que se tornam obrigatórias, mas aos poucos, vai-se dando uma crescente bestialiazação dos miúdos, quer em aspectos que se podem considerar um recuo civilizacional, quer no crescimento da violência dos mais fortes para com os mais pequenos ou os que lhes fazem frente, num crescendo de crueldade e mesmo selvajaria gratuitas que incomoda e assusta.

E que se torna mais chocante, pelo soberbo tratamento gráfico que a holandesa Aimée de Jongh imprimiu a esta versão: se as crianças são tratadas com um traço agradável e terno e a ilha começa por parecer um paraíso, pintado com cores quentes e luxuriantes, com o avançar das páginas o traço que representa os miúdos torna-se mais duro, as cores mais frias e a exposição sem rodeios da violência transmite o sentimento de desespero e terror puro que os protagonistas vão vivendo e que De Jongh tal como Goulding conseguem passar ao leitor, acentuando-os com a imagem final, que transpõe daquele local específico para o mundo real o registo da violência visceral inerente ao ser humano.


O Deus das Moscas
Aimée de Jongh
ASA
Portugal, Setembro de 2024
206 x 275 mm, 352 p., cor, capa dura
33,90

(versão revista do texto publicado na página online do Jornal de Notícias a 10 de Outubro de 2024 e na versão em papel no dia seguinte; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

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